Era uma vez um fragmento...

Sterne (1), a mais persistente influência literária do nosso velho Machado (2) e a quem ele mais se esmerava em imitar, narra no seu “Uma viagem sentimental através da França e da Itália” a estória de um certo fragmento de texto, escrito num francês arcaico, possivelmente do tempo de Rabelais. Talvez, suspeita ele enquanto admira as letras góticas, pudesse mesmo ter sido escrito pelo próprio Rabelais. A seguir, diz-nos que precisou iluminar seu espírito com uma garrafa de Borgonha para decifrar o que tinha em mãos, e que isso só fez aguçar sua curiosidade e interesse pelo restante do papel onde supunha encontrar a continuação do texto. Dedica ainda algumas páginas ao assunto descrevendo sua desventura nessa busca, e finaliza dizendo-nos que ‘se achou ou não, mostrará mais adiante’ embora não o faça. Talvez tenha propositalmente deixado isso para lá ou é possível também que simplesmente haja esquecido.

Lembrei-me disso porque ainda ontem, remexendo fotos antigas e velhas anotações, topei também eu, inadvertidamente, com um fragmento. Não agirei como Sterne que omitiu, perdeu ou sequer encontrou o conteúdo faltante do seu fragmento. Fiquem tranqüilos que já lhes coloco a par do que li. Aqui está:

“... linhas é que o célebre escritor modernista português António Botêlho Focinheira inicia o seu conhecido conto ‘Será o Bonifácio ou o Epitácio?’ : –

Naquela manhã nublada de fim de outono, Lindolfo Pessoa, por trás do monóculo fez crescer o olho rútilo em cima daquele necrológio que acabara de ver no jornal.

Estupefacto, mãos trêmulas, fechou o Diário do Comércio, persignou-se e deixou-se ficar olhando o nada.

Como, diabos – pensou – alguém podia, em sã consciência, deparar-se com sua própria nota de falecimento?

Sentiu-se envolto numa espiral girante. Ele, o velho e bom Lindolfo Pessoa, vulgo Pessoinha, aposentado do serviço público por invalidez, mas feito síndico do Edifício Brazil logo naqueles começos de anos vinte que corriam céleres, sim, ele, homônimo do grande vate luso criador dos heterônimos todos, via-se acompanhando seu próprio féretro.

Lera, havia pouco, o obituário de si mesmo; compungido, para não dizer ensimesmado. Agora, ele, Pessoinha em pessoa, se me permitem a redundância, via-se segurando firmemente uma das alças de seu esquife pessoal enquanto o cortejo...”

Notas (dissonantes):

(1) Sterne, Laurence; 1713/1768; escritor; irlandês, não consta que gostasse de naturezas mortas, mas era grande apreciador da paisagem humana que tão bem descreveu; foi autor divertido e que apreciava muito “flertar com seus leitores”.

(2) Machado de Assis, Joaquim Maria de; 1839/1908; escritor; brasileiro, homônimo do famoso largo carioca e autor de larga obra que abarca poesia, crítica, conto, romance, crônica, teatro...

(3) Focinheira, António Botêlho; 1890/1936; escritor; português, supostamente acompanhou desde seus albores o movimento modernista luso, tendo pertencido à geração de Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro com os quais conviveu nas redações de O Jornal e A Revista. Foi seu preceptor o Barão de Teive. Nas horas ociosas (que são muitas) costuma ser heterônimo nato e hereditário de http://lucabarbabianca.zip.net

luca barbabianca
Enviado por luca barbabianca em 29/12/2010
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