O Diplomata Negro

Leio no jornal que o Itamaraty acaba de criar cotas para negros no seu exame para a carreira de diplomata.

José Pompílio da Hora, erudito professor do Colégio Pedro II, foi recusado duas vezes de entrar na carreira diplomática descaradamente por sua condição racial.

Vejam a qualificação deste homem negro: Formado em Direito pela Universidade de Nápoles (curso reavaliado pela UFRJ). Aprovado na c a r r e i r a diplomática no Instítuto Rio Branco. Autor de vários artigos publicados sobre temas sociais. Ampla experiência magisterial no ensino de 2º grau e no ensino superior. Membro da Sociedade Brasileira de Romanistas. Professor de Latim, Grego, Filosofia e História do Colégio Pedro II. Também professor de Direito Civil e Direito Romano.

Tive a ventura de ser aluno deste notável crioulo (sem qualquer ofensa, pelo contrário, com muita admiração), como falávamos em 1950, no primário, do Colégio Santo Antonio Maria Zaccaria, na rua do Catete, na cidade do Rio de Janeiro. Nesta ocasião ele dava aula de História e tinha um hábito que chamava a atenção. Lá pelo meio da aula ele tirava do bolso do paletó uma latinha redonda, onde continha pastilhas Valda para refrescar a sua garganta. Muitas vezes chegava a usar duas ou três pastilhas Valda por aula, consequência do excessivo número de aulas que ministrava para sobreviver. Chico Anysio também chegou a ser aluno dele, bem antes de mim, naturalmente. O Chico o descrevia como um homem magro, elegante, que usava óculos e tinha uma cultura de padre. Também dava aulas no Atheneu São Luís e no Instituto La-Fayette.

A cultura do homem era impressionante e ele formou-se em Direito em Nápoles, na Itália. Não foi à toa que ele se classificou em primeiro lugar no puxadíssimo concurso público para Diplomata e foi solenemente dispensado por ser negro!

Tenho muita dúvida se o negro brasileiro precisa dessa facilidade para ingressar na Faculdade ou em um concurso do Itamaraty. Também não tenho um estudo aprofundado para tomar posição firme sobre cotas raciais, mas sabedor desse caso verídico do Pompílio, uma pessoa admirável, com fino humor, que, até onde eu saiba, nunca mostrou ressentimentos nem complexos com o que fizeram com ele, não posso deixar de ficar a favor das tais cotas, embora tenha convicção de que a educação resolveria definitivamente com essa grande mancha da humanidade que foi a escravidão, sem precisar apelar para políticos aventureiros interessados em criar um clima de racismo na nossa pátria.

Joaquim Nabuco, o maior lutador pela extinção da escravidão no Brasil, dizia: “Acabar com a escravidão não basta; é preciso destruir a obra da escravidão”. Parecia que o grande pernambucano Nabuco antevia essas injustiças lastimáveis que acabaram ocorrendo em número apreciável até quase os nossos dias, sendo o caso do Professor Pompílio da Hora marcante, intolerável e revoltante.

Felizmente, na minha casa, não recebi educação racista e meu pai cultuava a memória de uma negra, ex-escrava, carinhosamente chamada de Báia. Ela e seu filho Calixto foram protegidos do meu avô no início do século passado, em Manaus, Amazonas. Báia morreu com 106 anos e nos momentos de crises em nossa casa a invocávamos para nos proteger, como se fosse uma santa.

O grande Pompílio, Báia e Calixto, três negros, com histórias tão diferentes, que povoaram a minha imaginação e marcaram profundamente a minha infância e adolescência.

Evoé e Saravá para a negritude brasileira.