Pombofobia
Estudava na mesa da minha cozinha-sala-de-visitas quando encostei o cotovelo e o copo e ele caiu, quebrando-se fatalmente. Era um copo ordinário, desses que vem quando a gente compra massa de tomate, mas fiquei muito mais chateado como meu descuido do que com o prejuízo. Comecei a juntar os cacos quando ouvi um ruflar macio do lado de fora da janela. Parecia roupa caindo no chão. Terminei de juntar os cacos e sai da minha quitinete para o que tinha acontecido lá fora.
Era um pombo comum, desses meio acinzentado e com um leve tom lilás no peito, se debatendo. Abria o bico com bastante intensidade. Parecia-me totalmente impotente. Cada vez que este abria exageradamente o bico, como se quisesse pegar mais ar, levantava apenas a asa esquerda , já que estava numa posição em que a asa direita ficava pressionada pelo seu corpo, e estirava as perninhas com muita força. Aquela cena intensa me impressionou. Deixei cair o saquinho com cacos do copo. Num desses movimentos sincronizados de asas, pastas e bico percebi o jorrar de uma quantidade espessa de sangue de seu peito que aumentava abundantemente a cada respiração. Perturbei-me ao perceber que logo o pequeno animal esvair-se-ia, pois sangrava aos borbotões por uma fenda enorme aberta no nanico peito do animalzinho. Aquilo não era luta pela vida, era apenas um inevitável fim. Sem solução sem pressa nem socorro. Não corri para acudir, não chamei ninguém, mesmo porque estava sozinho nessa hora na república. Assisti cada espasmo da ave imaginado como teria este fato acontecido. Seria algum menino desocupado com sua divertida espingarda de pressão? Seria algum gavião que o teria atingido, rasgado-lhe o peito e deixado-o cair perdendo sua refeição? Mil hipóteses. E o pombo inexoravelmente morrendo...
Peguei o saco de lixo e fui colocar fora. Quando voltei, ele ainda debatia suavemente. Eram os derradeiros espasmos. Ou era o vento que fazia a suas asas levantarem um pouco? Não, o bico ainda movia, como se quisesse dizer algo importante, alguma confissão, algum ultimo pedido.
Filmes...
No dia seguinte acordei tarde para o estágio e estava ele ali: sendo festejado pelas formigas. Já não tinha um olho e as danadas cavavam a sua carne com muita voracidade. Tenho que tirá-lo daqui. Vai feder, pensei tomando café no copo descartável e abrindo o portão. Estava muito atrasado!
Nunca o tirei dali!
Dia após dia prometendo para mim mesmo, amanhã cedo o tiro. Deixa no final de semana eu faço um enterro para ele. E assim ia. Uma semana depois era uma figura bizarra. Uma caveira de pássaro com a plumagem do corpo intacta. Um mês depois era um esqueleto pronto para uma exibição ou estudo em uma escola de ciências naturais.
Não sei porque,mas, depois do acontecido, vencendo o mês do aluguel daquela quitinete, paguei minhas contas e me mudei para uma república do outro lado da cidade.