Jacarés, lixeiros. E os jardineiros?

JACARÉS, LIXEIROS. E OS JARDINEIROS?

(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 29.12.10)

Se alguém se dispuser a caminhar todos os dias pela calçada da Beira-Mar Norte ao longo da ciclovia, entre a Universidade Federal e a Reta das Três Pontes, ou Avenida da Saudade (que liga a Penitenciária ao Cemitério do Itacorubi e dá acesso às praias do Norte da Ilha de Santa Catarina), poderá, com alguma sorte e olho treinado, surpreender um jacaré pelas imediações. Jacaré de verdade, dos grandes, bonitos, pachorrentos. Outro dia três deles deixavam-se ver por ali. Dita calçada margeia primeiro o Rio do Sertão, habitat desses répteis crocodilianos aligatorídeos, e depois o manguezal do Itacorubi, hoje com área substancialmente reduzida porque o progresso implacável (e a especulação imobiliária mais selvagem) exige que coisas assim, fervilhantes de caranguejos de todas as cores e hospedeiras de uma imensa cadeia de seres vivos, sejam extirpadas das zonas urbanas, locais em que foram imprudentemente se meter.

As câmaras de vereadores, os prefeitos e os governadores são muito úteis nessa hercúlea tarefa de aproveitamento de espaços economicamente ineficientes como pântanos, praias e terrenos de penitenciárias desativadas. Haverá algo mais bonito e prático do que paliteiros de prédios cada vez mais altos que entupirão de carros as ruas já intransitáveis da cidade?

Essa pessoa, caminhando todo santo dia, há de, inevitavelmente, esbarrar três vezes a cada sete dias com os homens de verde da Comcap, a companhia de coleta do lixo. Eles saem do Centro e percorrem 9.800 metros até a Universidade espetando e recolhendo o que jogamos pelos gramados e "matagais": caixas, latas, garrafas, sacolas de supermercado, embalagens plásticas, jornais velhos, cadernos escolares, panfletos comerciais, papéis anti-higiênicos, sacos de lixo repletos.

Entretanto, ainda que esse sujeito caminhe diariamente durante um ano, ou durante um mandato inteiro, não encontrará ninguém cuidando de parques, praças, jardins e reservas, pois não existe departamento na prefeitura encarregado desses espaços (ou se há, ninguém dele sabe nem vê trabalho); encontrará, sim, deques traiçoeiros em ruínas sobre o mangue e passarelas enferrujadas caindo aos pedaços sobre as avenidas.

Já pensou se a passarela da Avenida da Saudade, podre, resolve vir abaixo no fervo do verão, na hora de maior movimento, ou seja, a qualquer hora do dia ou da noite?

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Amilcar Neves é escritor com oito livros de ficção publicados, diversos outros ainda inéditos, participação em 32 coletâneas e 44 premiações em concursos literários no Brasil e no exterior.

 

==> Em breve, "Se Te Castigo É Só Porque Eu Te Amo" (teatro) chegará às prateleiras das livrarias.

Amilcar Neves
Enviado por Amilcar Neves em 29/12/2010
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