E AÍ, BEIÇOLÃO!!
Devia fazer uns 50 – não, não sou tão velho assim –, uns 40 anos que o havia visto pela última vez. Éramos adolescentes, e me lembro bem de sua figura. Era alto, magro, desengonçado, com os ombros caídos, feito um cabide, os braços cumpridos e dedos da mão afunilados. Tinha o rosto inchado, descombinando com o resto do corpo, e o beiço grosso meio arriado. Diferentemente dos outros garotos, que viviam descalços, ele andava de sapatos, e nas poucas vezes em que se descalçava mostrava uns pés brancos e delicados. Pés de moça.
Nosso primeiro encontro não foi dos mais amigáveis: eu estava jogando uma linha no mar em frente de casa, quando apareceu a figura e começou a me aporrinhar. Eu não era de briga, e somente para assustá-lo disse:
– Me deixa em paz, ou vou aí e te quebro a cara.
Mas ele não se assustou com minha valentia e respondeu:
– Vem, se tu é homem!
Aí eu não podia voltar atrás. Recolhi a linha de náilon e parti em sua direção. Quando cheguei perto, ele veio de peito empolado como um galinho de briga:
– O que foi? O que foi?
Por falta de experiência em brigas, eu não sabia o que fazer primeiro. Então, sem dizer água vai (que expressão antiga!), larguei uma direta que pegou no lado de seu rosto. Deu de ouvir até o barulhinho do osso estralando. Ele deu uma recuada e esperei a reação, que não veio. Passou a mão no rosto dolorido e sua arrogância foi murchando. Vitorioso, voltei à minha pescaria.
Depois disso, pela sua proximidade com os demais garotos, acabamos ficando amigos. Ele era um cara alegre; não era médium, mas tinha muita presença de espírito.
Foi a lembrança que me veio naquela hora, em que o divisei no aeroporto de Guarulhos, sentado num banco, com uma imensa valise ao lado. O rosto era o mesmo, o beiço arriado parecia estar pesando na cara inchada. Só os cabelos já estavam meio ralos e os dentes apresentavam aquela perfeição metálica própria de uma prótese.
Dei-me conta de que não me lembrava mais de seu nome, todos nós o conhecíamos pelo apelido. Quem sabe fosse agora um doutor, um político, pessoa importante.
Mas não podia perder a oportunidade de falar-lhe. Cada antigo colega que reencontramos nos traz um pedacinho, às vezes esquecido, do painel que forma nossa vida. Por isso, fui em frente. Agarrei seu braço e, estampando uma alegria sincera, fui exclamando:
– E aí, Beiçolão!!
Ele ergueu a cabeça, surpreso, com uma atarantada expressão britânica, e mais balbuciou do que falou:
– Sorry, Mister. I don’t understand…