Ovos fritos em dia de fartura
Ficou em casa, sozinho ouvindo Count Basie, pianista, bandleader e gênio estado-unidense musical de peso. O futuro incerto diante do natal não lhe comovia. Gostaria nessas horas de poder esfregar na cara dos políticos nacionais o modelo de realidade da Finlândia. Sentia vontade de pedir asilo da pobreza aos finlandeses. Aqui resta uma cidade sem promessa concreta. Nem que quisesse um emprego vagabundo conseguiria recuperar as horas mortas. Todas as portas estavam fechadas e a única aberta seria para Missa do Galo.
Certa vez uma amiga íntima disparou: você é pobre com bom gosto. Equivalia dizer que era o carente com melhor bom-gosto que ela havia conhecido e se refocilado.
Não esqueça, porém, que este elogio vale apenas por alguns minutos de custo benefício. Frisou com ar alegre de menina rica prostituída pelo finíssimo sujeito de traços prussianos ali na sua frente. Espécie Caco Antibes.
Compreendia que a cada ano que passava as coisas se tornavam mais ágrias no país do tempo de quem viveu em miséria. Desventura diariamente maquiada com todos os truques da exploração deslavada dessa indiferença pública. Deveria ter herdado modos menos discretos para se adaptar ao jogo violento das ruas, esse ser forte e suave, longe da moda desde as Reflexões de Marco Aurélio. Devia modificar seus hábitos. Acabar com esta mania de leitor de clássicos e raridades. Devia comer com as mãos a própria alma e relinchar diante do prato feito das futilidades diárias. Ouvir duplas grasnadas ao contrário de Count Basie. Melhor era abusar da demagogia opulenta, proferir discurso, ser correto como furúnculo nas nádegas da estrela de novela. Fumar exclusivamente o ar das noites estreladas.
Naturalmente quando não se tem onde cair morto jamais se deveria gostar de Miles Davis e polirritmia improvisada. Deveria ser como estes bons sujeitos que passam por um quadro de Portinari com indiferença de quem desfila na calçada com sapatos de couro de jacaré sobre a garota pobre abortando na rua. Apresentava a gula secreta da beleza, além do cinismo cósmico, timidamente comedido para quem desmonta comentário com habilidade, mesmo sendo o absurdo. Suelaine, amiga do comentário infeliz, era prenhe de recursos, prenhez múltipla, fraca de cabeça, e se tornava alegre diante de uma boa perversão de princípios. Sua carne era o meu alimento básico. Alimento de sujeito arruinado pela profissão intelectual de jornalista ilustrador. Havia observado que nem só de dinheiro vivia o homem, como costumava repetir Suelaine, mas viveria melhor com porsche e sem câncer.
Coxa de peru acompanhada de coca-cola durante a ceia natalina seguida de dúvida espiritual: afinal, se o menino abiscoitou incentivo inicial em ouro, incenso, mirra, onde seus pais investiram os donativos? Mistérios de Roma que permanecem em nossa natureza de castelos, resquício de monarquia insaciável da busca do poder autocrático. A noite paupérrima e fria de natal resguardava o gosto apurado da vontade de ser alguém na multidão. Há casos em que negar o vício é ato de impiedade justificado exclusivamente por um baseado no país das maravilhas. Se o fizesse imediatamente algum guarda da tirania se aproximaria e lhe chutaria as costas com violência legitimada. Pisoteando-lhe o único indício de afago que possuía nas mãos vazias. Pobre devia ler exclusivamente Dostoievski, suspirou vencido pela televisão. Seguido de receitas culinárias para ovos fritos em dia de fartura. Finalmente encontraria no refinado gosto russo pela opressão um indício de subversão. Subversão sobre a vida pacata de visível alucinação, constituída pelo desejo inalcançável das datas compostas de alegrias. Vejamos, refletiu, é natal, ser feliz é a ordem. Danem-se. Não havia mais ninguém. Restava-lhe o violão de uma corda só antes que esta lhe sugerisse algo macabro ao seu retrato sinistro. Apelaria ao barbitúrico com o pouco de cerveja da latinha, já que havia lhe cortado a água na véspera do milagre da vinda de Jesus na terra. A água benta do imposto e das taxas fixas. Tomaria um banho se pudesse…