A fogueira

Hoje, dia um de Dezembro de 2010 abre oficialmente a caça ao Natal, a contagem decrescente para o grande dia começa com uma pequena estória que irá retratar uma família muito pobre do interior de Portugal. Desta família fazem parte uma mãe e três filhos, o pai deles não entra nas contas, pelo menos por enquanto... morrera antes mesmo de seus filhos se aperceberem da sua presença; segundo os boatos afogou seu fígado em vinho. José, é o filho mais velho e aquele que é digno do nome do pai, está perto dos quarenta, mas se comporta como uma criança, sua alcunha é “Zé – o monstro”. Sua feiúra é tão grande que rapidamente ganhou esse cognome ainda em criança; é forte, robusto, mas feiiiiiooo que só visto, quando se olha para ele chega a doer. Dói-lhe a ele, e dói-nos a nós.

Francisco é o irmão do meio, 35 anos mal feitos, mais conhecido como Chico do assobio, sua especialidade é usar cada um dos dedos da mão para assobiar, até com o dedo mindinho ele consegue criar ruído. É um verdadeiro Tony Soprano. Só de nome, pois de resto é frágil, baixo e tem seu corpo cheio de marcas de guerra, não que ele tenha participado em algum confronto de titãs, mas viu seu corpo ficar deformado depois de um sobreiro lhe ter caído em cima durante o seu corte.

- O lenhador ainda gritou - “foge Chico”... Sim, ele fugiu? - Não, por isso que ainda hoje me questiono como pode uma coisa destas acontecer, só mesmo estando muito distraído e com muito azar para que uma fatalidade destas o tenha acometido. Por fim, temos o irmão caçula, também ele uma bela ave rara, de seu nome Delmar - franzino e com aspecto de moribundo - mais conhecido como o chupeta, o rapaz que andava sempre com o polegar direito metido na boca (agora menos), e que está prestes a fazer 32 anos. {“Que raio de vício, aposto que chuchou na chupeta até tarde, só pode”}

Apresentados os filhos, segue-se agora uma tentativa desesperada de caracterizar a mãe - Carolina - da qual sou incapaz de fazer um perfil, sempre a achei uma pessoa misteriosa, que falava muito pouco, e se em algum momento eu a conheci, isso aconteceu através desta canção popular...

- Música maestro; dê corda à grafonola...

(Lentamente a música de faz ouvir)

A saia da Carolina

Tem um lagarto pintado

Sim Carolina ó - i - ó - ai

Sim Carolina ó - ai meu bem

Tem cuidado ó Carolina

Que o lagarto dá ao rabo

Sim Carolina ó - i - ó - ai

Sim Carolina ó - ai meu bem

A saia da Carolina

Não tem prega, nem botão

Tem cautela, ó Carolina

Não te caia a saia no chão

A saia da Carolina

Tem uma barra encarnada

Tem cuidado ó Carolina,

Não fique a saia rasgada

A saia da Carolina

É da mais fina cambraia

Tem cautela ó Carolina

Que o lagarto leva-te a saia

A saia da Carolina

Foi lavada com sabão

Tem cuidado, ó Carolina

Não lhes deixes por a mão

A saia da Carolina

É curta e das modernas

Tem cuidado ó Carolina,

Que ela não te tape as pernas.

A grafonola pára de tocar, o maestro regressa a casa, a música se esconde por entre uma névoa que se abate sobre a aldeia, o frio começa rompendo pela serra abaixo, as chaminés dos habitantes se enchem de fumo, as luzes coloridas colocadas nas árvores de Natal cintilam ao longe, e a mesa de Natal começa ganhando forma: um bolo de bacalhau aqui, uma travessa de rabanadas ali, dois pratos de filhoses acolá, e, um belo de um peru assando no fogão a lenha para regozijo de uma família que precisa esperar pelo Natal para poder degustar todas estas maravilhas. Á mesa se assentam os três filhos com sua mãe, fazem uma reza, talvez peçam a deus que ilumine suas cabeças tão sem juízo, ou quiçá que Deus lhe dê muito vinho na mesa. Eu vou mais pelo segundo pedido, pois me parece mais teatralmente oposto ás reais preces de uma família normal.

Acabado o jantar é hora de sair de casa e ir colocar a fogueira a arder, a fogueira que todo o ano é acesa no dia de consoada junto á pequena capela de Nossa Senhora dos Milagres (Padroeira da aldeia) - a lenha já está no local, o “mesmo” sobreiro que agrediu Chico é escolhido meticulosamente todos os anos para ser o rei da festa; o motivo? É simples - sua resistência, ele arde, arde, parece interminável... Sua dureza é uma arma, que o diga o próprio Chico. Bem junto ao sobreiro permanecem os dois pneus do carro velho do Tio Leopoldo, ele que perdeu um olho na infância lançando um pião, é agora o doador de serviço, único mecânico existente na aldeia. Está velho, ou estava, dois anos se passaram desde que o vi pela última vez, os anos tem sido cruéis com ele, suas mãos calejadas e negras são as mesmas que me davam 50 escudos que eu torrava nas mesas de bilhar enquanto criança. Se ainda é vivo, isso quer dizer que a fogueira continua ardendo. E este ano irá arder novamente, para isso basta um fósforo juntamente com um litro de gasolina.

- Nisto, alguém risca um fósforo na parede e pede um desejo. Quem seria esse alguém? Agora fiquei curioso! Um dos irmãos? É possível, mas qual deles teria a destreza para isso? Eu vou apostar no irmão do meio, por uma questão de justeza, mas o caro leitor pode escolher outro.

O alastrar do fogo é rápido, o material inflamável torna o seu início num espetáculo pirotécnico de beleza singular, as chamas se elevam ao céu, podendo ser vistas de todos os pontos da povoação. Da Janela da minha casa posso sentir o cheiro da borracha queimada e olhar aquele clarão enorme que realça a capela da nossa aldeia. As badaladas no sino marcam o inicio do festim: as pessoas se aglomeram aos poucos em volta do fogo, e se divertem bebendo cerveja/vinho e contando estórias do arco da velha, ao mesmo tempo em que os três irmãos colocam carne no assador. Eles são os operários da coisa... Isso ninguém dúvida.

Olhando para o trio dá até a idéia de que estes pobres moços, cujas calças descem e sobem como as ações da Petrobras, se preparam o ano inteiro para este momento. Talvez este seja o auge das suas vidas, dos seus anos, da sua miséria. O ato é em si, algo de fantástico; a hora é de comemorar, de jogar para trás das costas as desgraças, e voltar a face enrugada pelo frio para o fogo, ele - o fogo - assume certo misticismo para todos aqueles que por ali passam ou ficam; ali não existe um único inimigo, pelo menos até á meia noite, a partir daí todo mundo acaba por se queixar de algo. Mas aí, é o álcool falando. Que desce pela goela deles em passo doble, como se estivéssemos perante um manicórdio {‘!’} manicômio. Ao mesmo ritmo, as conversas que agora entram pelo 25 se espalham por caminhos indecisos, se o pai dos três irmãos estivesse ali, certamente que diria três coisas e meia: estou orgulhoso de vocês meus filhos; Zé, vai lá buscar um tinto para mim que estou morrendo de sede aqui no depósito dos bêbados. Chico pára de assobiar que não me deixas dormir; e por último, Delmar, meu querido filho - pára de colocar esse dedo na boca, isso fica feio, coloca-o antes no... bolso.

Já Carolina, vê-se agora sentada num banco bem junto à fogueira, observando toda aquela discussão animada dos filhos, á qual seu pai decide todos os anos se juntar depois da meia noite. A cara dela é de poucos amigos, ou nenhuns... Dá-me pena vê-la ali sentada com suas saias grandes, cheias de remendos, fazendo contas de cabeça, lançando olhares severos em direção á fogueira... Abana a cabeça: uma vez, duas vezes, e á terceira - balbucia meia dúzia de palavras entrecortadas pelas gargalhadas de seus filhos...

- Sim Carolina, ó-i-ó-ai, liberta o Lagarto que há em ti e junta-te á festa.

Ps: já me ia esquecendo, o pai do trio chamava-se Agostinho, se meu avô fosse vivo, ele diria: Agostinho, Agostinho... pára de provar o vinho.

Jvcsilva
Enviado por Jvcsilva em 23/12/2010
Código do texto: T2688174
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