Minha Pátria

Escuridão total..., pouco a pouco um movimento leve das pálpebras, um relaxamento,suspiro profundo, leve bocejar.

Pés no chinelo..., um suspiro longo.

Um campo verde, flores e uma leve brisa matutina.

Seus pés descalços, em contato com o orvalho transmitia ao cérebro uma sensação de conforto.

No horizonte uma bela e coposa árvore, sob a qual descançava ao meio-dia. Nesse momento é que vinha a mente lembranças da infância: o café da manhã, os aromas, sons e sabores.

_ Quanto tempo faz?

_ Um, dois, dez anos?

Enfim, o tempo e com ele novas sensações que se sucediam assim como os dias e as noites. o tempo tão impalpável quanto aquela água com a qual se lava o rosto todas as manhãs, as quais sempre trazem velhas esperanças e novas decepções.

As mortes se sucediam, embora em quantidade inferior aos partos; o que explica o aumento considerável da população, comprovada pelo último censo.

Novas tecnologias foram descobertas, as quais trouxeram mais conforto, diminuiram as distâncias e aumentaram a solidão. A medicina descobriu novos medicamentos para os mais temíveis males do corpo, enquanto o consumo tenta amenizar os males da mente: insegurança e baixo-estima são resolvidas em frente a vitrine.

A depressão está substituindo o resfriado, os livros de auto-ajuda a aspirina. Iniciou-se há algum tempo o declínio das ideologias, as quais foram substituídas pela busca do sucesso.

_ Diga-me com que carro andas e eu te direi quam és.

_ Amarás aos teus bens como a ti mesmo.

Em algum livro antigo, abandonado na estante; entre litros de uísque importado, algo assim está escrito, ou não?

_ Ah! não sei bem, peço desculpas, minha cabeça já não guarda bem aquilo que algum dia leu. só as imagens ficam, como o logotipo daquela marca famosa..., inesquecível.

Fora isso, só as canções são inesquecíveis, embora hoje a indústria fonográfica tenha substituído as belas canções pelo apelo sexual com uma associação, tão geniosa e lucrativa quanto vazia de sentido, entre som e imagem.

Para aqueles que ainda não perderam a capacidade, ainda é possível atingir o êxtase incomparável da música, porém somente de olhos fechados.

_ Ah!!, o sexo? faça de olhos bem abertos.

Em algum altar ou palanque um facínora qualquer, entre tantas correntes e crenças, manipula almas desesperadas que habitam corpos acéfalos, os quais perambulam pelas ruas e repartições como zumbis, sedentos do sangue dos livres; tão podres como o corpo de Lázaro, antes de voltar à vida. Eles, ao contrário de Lázaro, não voltarão à vida, já que não têm consciência de que estão mortos.

Eu sei, é terrível levantar-se e atravessar a fronteira que separa esses dois territórios.

Deixar a sua gente.

_ Tudo bem, sei que raramente os encontro, ah! mas como vale a pena esses raros momentos.

Lentamente me preparo pra adentrar esse território que, embora conhecido, ainda me dá arrepios ao cruzar a soleira.

O que me consola é saber que o que me consome também é consumido pelo tempo que, para o bem e para o mal, nunca pára.

E assim, cotidianamente encaro meus carrascos, sorridentes ditadores, simpáticos tiranos, caridosos usurpadores, honrosos assassinos, excelentíssimos carrascos.

Podes achar engraçado ou mesmo incompreensível mas muitas vezes até me divirto com eles, embora evite sempre lhes dar as costas, simples medida de segurança.

Mas somente me sinto livre quando retorno à minha pátria: sem bandeiras, sem hino, sem carta magna. pouco habitada, um Canadá com sol e sem pinheiros. No entanto cada habitante tem um papel único, não há luta pelo poder, pois ele cá não existe, não há exército, pois cá as batalhas são travadas no campo da linguagem, nunca houve mortos, no máximo feridos.

Os nossos heróis não são nacionais, falam línguas diversas: russo, italiano, inglês, francês, assim como a inculta flor do Lácio.

_ A minha pátria não é minha língua.

Agora abro a porta que dar acesso a minha pátria, eo faço com a ponta dos dedos, sem estardalhaço, em silêncio ou com uma canção ao fundo.

E assim lentamente percorro os caminhos de minha infância, do alto dos montes observo os que não me vêem, e tento compreendê-los, embora geralmente sejam incompreensíveis.

Vou à São Petersburgo e em seguida à velha París, logo depois estou de volta à pequena vila no sertão nordestino, de cada lugar trago novas mercadorias, cada uma de incomparável valor. Na minha pátria não há comércio exterior, só interno, a econômia tem como base a troca, nada se vende, nada se compra.

Em minha pátria o amor é quase sempre possível, e quando impossível não mata, no máximo leva os amantes a um banho de lágrimas que purificarão suas dores.

_Se tudo fosse possível a vida não teria sentido, assim como as minhas palavras, mas de qualquer forma há sempre uma possibilidade de beleza, mesmo na catástrofe.

Desipere in loco
Enviado por Desipere in loco em 23/12/2010
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