Deliberada Má Vontade
Não leia, se tiver coisa melhor pra fazer.
Ontem pela manhã tomei chuva de casa até o ponto de ônibus. Do Metrô até o trabalho fui escaldado por um sol infernal. Como de praxe, o dia se arrastou até as duas da tarde, horário do meu almoço. Saí pra almoçar e quase fui arrastado por um vento quente e úmido, antecipando o fim dos tempos. Durante todo o tempo que passei mastigando, não caiu uma gota. Assim que tirei o rabo da cadeira pra sair, caiu o mundo em água. Esperei. Estava atrasado pro exame demissional. A chuva parou e fui até o Metrô. Fiquei sob a saída do ar condicionado. Meu nariz começou a escorrer de tanto quente-frio-quente-frio. Tomei chuva da estação São Bento até o prédio onde eu faria o tal exame. Suava. O clima estava realmente abafado e irritante. Subi nove andares num elevador belíssimo.
Uma recepcionista indiferente me indicou o local que eu deveria preencher alguns formulários. A moça que cuidava dos formulários falou rapidamente, apontando uma meia dúzia de folhas, o que eu deveria e não deveria preencher. Sentei numa cadeira qualquer e apoiado numa prancheta cheia de rabiscos típicos de escola pública, preenchi meu nome completo (que é bem comprido, diga-se de passagem) umas oito vezes, com endereço, cargo e blábláblá - também oito vezes. Assinei umas dezesseis. Depois, fui encaminhado para uma salinha com vista pra Avenida São João. Chique. O doutor, um gordinho atarracado e com feições simpáticas me atendeu. Fez algumas perguntas acerca dos motivos do meu desligamento e prendeu um treco no meu pulso. Fiquei olhando o tal treco apertando o meu pulso, tirando a pressão. Gostei daquilo. O doutor assinou e carimbou uns três papéis e me desejou boa sorte, indicando a porta da rua. Muito gentil da parte dele.
Fui até a Galeria comprar uns ingressos pros amigos. O lugar, abarrotado de gente afoita por gastar. Contemplei com indiferença algumas vitrines em busca de algum tênis novo. Todos os que me agradavam custavam metade do meu salário. E se nem quando eu podia contar com um salário, comprava um troço daqueles, imagina agora, teoricamente desempregado...
Constatar isso me deprimiu um pouco. Aquela gente gastando tanto o dinheiro dos pais e eu lá, com o cu ralado de tanta ostra e com a cueca furada. Mas tudo bem. Como o Metrô fica um inferno quando chove, decidi ir até o Terminal Parque Dom Pedro andando pra pegar algum ônibus bacana. Viaduto do Chá, Rua da Quitanda, Ladeira Porto Geral. O caminho de sempre, de todo o sempre. Garoava e continuava abafado. Preparei-me psicologicamente pra ficar duas horas e meia dentro de um ônibus cheio com as janelas fechadas. E, depois, iria até a faculdade pra tentar consertar a cagada que eu fiz. Por incrível que pareça, o terminal estava vazio. Peguei o melhor ônibus possível e escolhi um banco atrás daquele banco mais alto, pra poder mimir um pouco. Pouco? Capotei e acordei assustado e com o pescoço estalando, faltando apenas dois pontos pra chegar o meu. Desci e começou a chover. Entrei no mercado pra comprar alguma coisa e esqueci o que era. Fiquei parasitando lá dentro e por fim saí, de mãos abanando. Tinha parado de chover. Cheguei em casa e me deparei com o de sempre: a indisposição parada na porta me esperando, esticando uma xícara de ácido sulfúrico e um cobertor de urtiga para me confortar do dia difícil. Na verdade, me deparei com as minhas coisas fora do lugar. Não sei vocês, mas eu quero matar o ser humano que mexe no que é meu sem devida autorização e quebra ou acaba com seja lá o que for, e ainda acha que está na razão. E para não sucumbir aos meus impulsos coléricos e instinto assassino, tomei um comprimidinho de calmante e fui dormir. Seis e meia da tarde e eu indo dormir. Nota: demorei MESES pra criar coragem e ter fundos e motivos pra resolver o lance da faculdade e, quando entrei no site, bem, eles haviam entrado em recesso. Dormi. Acordei às dez e fiquei vagabundando na internet até as duas e meia da manhã. Coloquei pra despertar às oito. Não quis levantar.
Levantei oito e meia, totalmente indisposto pra fazer qualquer coisa que me deprimisse. Ir trabalhar era depressão na certa. Comi o mesmo pão de forma que comi nos últimos cinco dias, tomei banho com a maior preguiça do mundo, me troquei com a maior preguiça do mundo e saí de casa.
Encontrei um gato lindo no meio do caminho e fiquei brincando com ele por alguns minutos. Segui indo até o ponto e vi o ônibus que pego indo embora. Dei de ombros e fiquei esperando outro. O outro veio meio cheio e não estava afim de pegar ônibus cheio tão cedo.
Continuei esperando. Que tinha eu a perder?
Entrei numa lotação vazia que me deixaria no Metrô. Li um pouco e cochilei. Desci na estação faltando dez minutos para a batida do meu ponto. Andei mansamente olhando os pombos, os taxistas, os perueiros, o trem do outro lado da avenida...
Chegou um ônibus cheio. Fui o último a entrar e fiquei ali em pé, ao lado do motorista, apreciando a paisagem. Paisagem: centenas de metros preenchidos com fileiras de carros prateados, pretos, azuis, vermelhos. Motoqueiros passavam nos corredores com extrema coragem e destreza. Um morador de rua cagava embaixo do viaduto. Um caminhão de uma seguradora levava um SUV que eu sequer reconhecia o logotipo, porém, tinha a plena certeza de que nunca teria um daquele nem trabalhando oito vidas.
Não sei como, cheguei apenas dez minutos atrasado. Entrei como sempre: como se tivesse chegando na hora. Já tinha cansado de subir escada correndo e de ficar pagando Metrô pra nada. E não, eu não sairia nunca dez minutos mais cedo de casa. A culpa é do trânsito. Bati o ponto e circulei pelo local em busca de um carregador pro meu MP4. Coloquei pra carregar e fui até o banheiro. Fiquei por lá uns cinco minutos. Voltei e liguei o computador. Esperei ele ligar. Estava de mau humor, indisposto, entediado, com fome e com sono e essas reações adversas só se dissipariam após um bom e farto (e caro para os padrões do meu infeliz vale refeição) café da manhã e um pouco de paz da parte dos presentes. Tinha ido com uma camiseta virada do avesso. De vez em quando eu enjôo das estampas das minhas camisetas e as coloco do lado contrário. Ficam menos desbotadas e camisetas lisas estão em voga. Mentira. Enfim.
- Você tá quietinho hoje.
Como se eu chegasse alardeando um "BOM DIAAAAA"! Não respondi. Eu estava com um livro ABERTO e com a cara enfiada no livro LENDO o LIVRO - aqui a redundância é deliberada. A pessoa coloca a metade do corpo no espaço da minha mesa.
- Por que você tá quietinho? Aconteceu alguma coisa?
Não é pedir demais. Não é ser esnobe. Eu já conversei com a pessoa sobre isso, mas ela gosta de levar uns sopapos na cara. Caralho, eu só queria ficar quieto, sem falar com ninguém. Ela acabou desistindo...
O telefone toca. Olho pro número. Atendo ou não? De antemão, sei que a pessoa do outro lado da linha vai conseguir me irritar. Dou uma chance ou não?
SR* = Script Ridículo: Nome do banco/Nome/Bom dia/tarde/noite.
- SR*
- Quem tá falando?
- RAFAEL - Rafael coloca no mute e diz: "SURDO FILHO DA PUTA".
- Marcelo, tudo bom?
- Tudo - Rafael coloca no mute e diz: "Seja breve, porra, seja breve, porra".
Silêncio. Ele espera que eu devolva a pergunta do "tudo bem?". Até certo tempo, nós devolvíamos a pergunta. Mas antes de darmos o tom de interrogação, eles nos atropelavam com toda a má educação possível soltando suas ladainhas e problemas. O que nos chateava um pouco.
Ele explica o problema. Problema corriqueiro e básico. Dou a solução. Mas ele não entende. Não entende por que enquanto eu explico, ele fala ao mesmo tempo. O que me irrita. Explico novamente, já um pouco alterado. Ele repete a informação e pergunta se é aquilo mesmo. Falo que é. Então ele acrescenta algo que não existe na informação que passei e pergunta se é isso mesmo. Aí a coisa muda um pouco:
- Você ouviu eu falando que é dessa forma?
- Não, mas é que...
- ENTÃO É IS...
Aí eles entendem. Quando o tom de voz já assume a sonoridade de uma ríspida e inesperada chicotada. E desligam com o rabo entre as pernas.
Retomo a leitura. Outra ligação. O mesmo dilema: passar raiva ou não? Deixei a pessoa lá esperando um pouco. Se ela aguentasse dois minutos esperando, era um sinal de persistência e ambição e ela até tinha um pouquinho de direito de me irritar. Atendo. Ela entende o meu nome na terceira vez que o menciono. Isso me irrita, lógico.
E assim o dia vai transcorrendo infernalmente devagar, entre uma ligação que atendo e outra que derrubo, entre uma pessoa que faz piadinha ridícula por causa da camisa do avesso e outra que fala algo que me leva às gargalhadas, entre umas vinte idas ao banheiro e outros tantos passeios clandestinos passíveis de medidas disciplinares.
Estava pronto pra efetuar uma compra online quando o computador dá pau. Apareceram uns caracteres japoneses misturados com os desenhos do baralho e travou tudo e começou a reiniciar sozinho. Coloquei pausa no telefone (o que significa não atender nego chato) e fiquei olhando o monitor. Contei doze reiniciações (?) e fui mijar. Voltei e bati o ponto do almoço.
Batata grelhada, batata frita, purê de batata, batata smile, batata palha... O melhor almoço de todos os tempos! Tirando a televisão que as minhas amigas resolveram colocar no restaurante. Assisti um pouco de um DVD do Elton John e um pouco de um jogo de times sub-20 (eu acho). Por pouco, aquilo não estraga o almoço. Voltei pra empresa. Levei o livro e o abri no refeitório, doido pra saber o decorrer da história. De uma história que eu já conhecia de trás pra frente, por sinal. E como paz é um artigo de luxo e eu sou pobretão, lá vem alguém pra sentar do meu lado e puxar papo. Alguém que ignora a minha leitura e os meus fones de ouvido. Ah, por quê? Fui cordial e fechei o livro. Estava ranzinza demais, ultimamente.
O elevador quebrou na hora que decidi subir. Bati o ponto no último segundo e liguei o computador. Ele não queria ligar. Contei mais cinco reiniciações (?). Fui escovar os dentes. Escovei com toda a calma de um monge. Arriei numa privada e cochilei por uns dez minutos. Voltei pro computador. Nada. Avisei um dos supervisores. Ele ficou de resolver o problema. Abri o livro e enfim, consegui ler um pouco. Mas fiquei com sono e comecei a cochilar na mesa. Uma supervisora me acordou querendo o número sei lá do quê. Passei o número, levantei, peguei o MP4, o celular, coloquei os fones, liguei e fui pro banheiro. Coloquei o relógio pra despertar dali uma meia hora. Dormi e acordei com a tiazinha da limpeza batendo na porta, querendo trabalhar. Abri a porta bocejando e tinha um vergão vermelho na minha testa. Lavei o rosto e voltei pro computador. Nada. Comecei a ficar entediado.
As minhas preces contra o tédio foram atendidas. Chegou a monitora. A pessoa que ouve as ligações e fica bisbilhotando a nossa tela, com o dedo doido pra dar um print screen e foder nossa vida, caso estejamos (?), por exemplo, efetuando compras na internet ou atualizando o Recanto das Letras. Perguntou se eu poderia dar uns minutos pra ela, pra receber meu último feedback naquela bendita empresa. Seria um momento emocionante e marcante. Não.
- Você foi pontuado de novo e adivinha com o quê!?
- Com aquele script idiota...
- Se você sabe, por que não faz?
- Não me convém.
- E semana passada eu peguei você derrubando ligação duas vezes... O que eu faço com você?
Fiquei um pouco abalado com isso. Ela queria me foder e acho que não podia. Coitada.
- Ah, qual é? Já estou com um pé praticamente na rua, eu odeio atender esse povo e já pedi pra me deixarem fazendo outra coisa durante o aviso prévio. Não deixaram, então segura.
- Mas não é assim. Olha, você está saindo, eu sei, mas... Você sabe que daqui seis meses você pode voltar, não sabe? Por que fechar as portas?
Falávamos olhando no olho. Eu estava com a cara enfiada na divisória das mesas implorando pra não ter ouvido o que acabara de ouvir.
- Eu sei que você está de saco cheio - Ela continuou, menina simpática - E hoje está saindo daqui, mas não se sabe o dia de amanhã...
Pensei um pouco. Cogitei a possibilidade de responder. Mas, subitamente, me senti cansado de tudo aquilo. Explicar que eu estava saindo pra nunca mais voltar; explicar que só um imbecil deixaria uma empresa com aquele salário pra voltar seis meses depois ganhando a METADE pra fazer uma coisa mais degradante ainda. Eu não sei o dia de amanhã, mas pensar com essa resignação, com essa aceitação de que qualquer coisa que está por vir, mesmo sendo ela um retrocesso, é coisa de perdedor e eu não estou, decididamente não estou, saindo de lá pra me foder. Saio pra procurar o melhor e, caralho, não é isso que todo mundo fala? Para corrermos atrás do melhor? E por que quando tomamos a iniciativa, seja ela brusca ou drástica ou o caralho que for, vêm com essa filosofiazinha barata cheia de autocomiseração?
- Bom, posso ir, agora?
- Pode, seu chato... Boa sorte!
- Ah, que nada...
O pessoal que entra às nove começou a ir embora e assumi o lugar de um deles. Dezenas de ligações em poucos minutos. Repetindo meu nome de duas a quatro vezes em cada uma delas. Explicando que focinho de porco não é tomada de vinte a quarenta e cinco mil vezes. O ar condicionado estava congelante a ponto de dar dor de cabeça. Gostei daquilo. Levantei e fui escovar os dentes de novo. Dei tchau pra galera - sem compensar os minutos de atraso.
Saí no ar quente da rua. Entrei no metrô com o ar congelante. Saí pro ar quente da Sé. Entrei em outro metrô quente. Saí no calor da Estação Paraíso e entrei em outro metrô congelante. Meu nariz começou a escorrer. Mas parou rápido. O porquê eu não sei. Mas parou. Fiquei esperando. Esperando. Esperando.
Odeio esperar.
Por fim, chegou, deslumbrante e com olhar assustado. E todas últimas 24 horas foram se reduzindo até por fim, se dissiparem.
Tem mulher que é magia pura.