Os surrados pela lei cega

O homem saiu do fórum espicaçado. Podia contar com tudo na vida, menos com a injustiça no lugar onde mais se proclama a justiça. Pobre Agenor. Simples, trabalhador, direito. Honestidade física. Sua honestidade era como um certo tipo de água da correnteza suave. Quando recebeu pelo correio a intimação sentiu tristeza. Era na verdade um assunto ligado a morte de seu pai. Nenhuma herança. Apenas uma senhora que se dizia “esposa” de seu falecido pai. Há muitos anos ele habitava um quarto de pensão em Aurora, ficava nos fundos.

A comarca de Porto Alegre era um tirão de distância. Por razões de segurança o velho remetia os recibos de pagamento do quarto em que vivia todos os meses. No começo teve um caso com a mulher; logo percebeu o seu gênio diabólico. Temia muito o seu filho, pois era criminoso e havia matado cruelmente a mulher e a sogra. Estava solto. Seria o mesmo advogado de acusação o que havia lhe libertado?

Como sofria de diabetes precisava manter a alimentação regular, se fizessem autopsia veriam a negligência com que estava sendo tratado. Provavelmente não haveria comida em seu estômago. O velho gostava das farras, das noitadas e dos carnavais. Ganhava salário de militar com patente, embora vivesse modestamente para desfrutar da vida regaladamente. Isto lhe dava um ar de abandono explorado com vileza pelo advogado de acusação. Tipo animalesco, com um traço de corte no rosto. Belicoso e traiçoeiro.

Com poucos recursos viajou até a capital. Precisava de um advogado, tarefa difícilima, até receber uma indicação de amigo. Aparentava ser um homem de fino trato, olhos miúdos de faiscar suspicácia. Conhecia o outro advogado de acusação. Havia sido colega dele. Comentou que o tipo havia sido reprovado diversas vezes no curso de direito. Porém mais pela insistência do que pelo talento imprimia nos fóruns com um teatro repulsivo de agressividade. Seu estilo.

- Temos aqui a cópia dos recibos. O juiz compreenderá que houve certa vontade inicial para com o futuro desta senhora, mas...

- Ele morreu sózinho no quarto dos fundos. Que relacionamento estável poderia permitir que o seu amor morresse em tais condições?

- Era inquilino. ... Assim como morrer num hotel e a proprietária do hotel alegasse ser legitima esposa do falecido hóspede. Não faz sentido.

- Que tipo de especulação mental leva um filho a ser réu neste caso? Também lhe envergonhava as atitudes repugnantes do advogado de acusação. Frontais.

Durante a audiência ficou calado o tempo todo, suspeitando até mesmo em crime perpretado pela falta de assistência, e toda a cena sendo transformada em abandono de idoso. Para ocultar. Criar a vantagem já instaurada num primeiro processo. Uma armadilha requer muito dinheiro e influência para ser destruída.

Deixou o processo nas mãos do advogado de defesa e retornou para a cidadezinha pacata. Era tudo o que podia fazer.

Meses mais tarde recebeu a notícia de que a senhora havia sido considerada viúva e segunda esposa de seu finado pai. O advogado de defesa não compareceu na audiência quando solicitado pelo juíz. Mesmo assim, sem defesa o juíz dá ganmho de causa a parte presente. Se estava a quinhentos quilômetros da comarca! Se havia contratado e pago um advogado para cumprir a sua obrigação! Obrigação de lhe representar é sem punição? Uma questão de ordem desta natureza é algo sem maiores considerações? Expediente normal. Nenhum jornal vê nisso algo de assombroso. Nenhuma televisão noticia. Resta o vazio e o medo.

Anos mais tarde num encontro casual sentiu o sangue lhe ferver. Lá estava o advogado que deveria ter lhe defendido diante da pizza como um homem sem mácula. Não se conteve. Mal foi reconhecido e o desgraçado começou a tremer e a se desculpar. Levou uma surra severa, mas tão severa que foi incapaz de procurar a justiça para se defender. A consciência da culpa não lhe permitiu. Perdeu a face de homem bom que vai pescar enquanto as pessoas descem aos infernos.

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Tércio Ricardo Kneip
Enviado por Tércio Ricardo Kneip em 22/12/2010
Reeditado em 01/01/2011
Código do texto: T2686568
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