Cristina e as Eneidas do Recanto
Sonhos. Por mais que a ciência tente explicá-los, não podem ser analisados a partir de teorias científicas. Os sonhos são mensageiros divinos, levando-nos a devaneios celestes desprovidos de qualquer laço com os desígnios materiais. Hoje acordei sonhando, se é que isso é possível. Sabem quando acordamos e as imagens que embalavam o sono se negam a nos deixar? Foi assim que acordei, com a imagem de Cristina passeando pelo meu quarto. Quanto tempo faz que não a vejo! E sempre que pegava o telefone para ligar, algo acontecia e eu ia adiando a conversa sempre tão amável com minha amiga. É a vida passando em alta velocidade e nos impedindo de viver os singelos momentos de felicidade.
Resolvi ser condutor de minha vida e usar eu mesma o freio. Deixei o trabalho de lado e liguei para Cristina. Que surpresa eu tive! Seu segundo filho nascerá daqui a algumas semanas. Ela, muito feliz, contou-me com sua voz mais doce que o habitual sobre o sexo da criança, o quarto do bebê, o nome escolhido, e eu já o sentindo em meus braços, prometi que iria visitá-los assim que ela e seu bebê estivessem em casa.
Voltei ao trabalho, porém, mais uma vez tive que deixá-lo, dessa vez, o freio foi involuntário, precisei sair para resolver um desses problemas que surgem justamente no dia em que gostaríamos de ter o poder de parar os ponteiros do relógio. E já que não tinha escolha, fui. Durante o caminho, já mais resignada, me permiti parar em frente ao rio e enquanto sonhava em desvendar os segredos daquela pintura, aproximou-se de mim um velho amigo a quem eu não via há muito tempo. Conversamos durante quase uma hora, lembramos do tempo em que éramos mais jovens, do primeiro emprego, dos amigos em comum que não víamos mais, falamos sobre família e trabalhos atuais, enfim, como se diz, colocamos o “papo em dia”.
Ao nos despedirmos desejamos boas festas, ele entrou em seu carro e eu no meu e saímos em direções opostas. O reencontro com esses dois amigos hoje me fez lembrar Eneida de Moraes e seu texto “Companheiras”. Fico imaginando que experiência maravilhosa nasceu de atitudes tão dolorosas. Aquelas mulheres estavam presas em uma cela, como descreve Eneida, ora quente, ora fria, mas uma cela em que o amor que emanava daquelas mulheres tornava o ambiente permanentemente sereno, independente da temperatura. Elas, prisioneiras políticas, cheias de ideologia, cheias de descontentamentos, de marcas de torturas, apoiaram-se em suas dores e umas nas outras e transformaram seus dias de horror em dias fraternais.
Confesso que sempre que leio Eneida e suas companheiras, sinto uma vontade imensa de ter vivido naquela época. Eu gritaria aos quatro ventos que era comunista, só para que as companheiras passassem de 25 a 26. Ah! Que desejo incontrolável de ser companheira de Eneida e suas companheiras. Seria confidente, amaria seus filhos, me preocuparia com seus maridos, sentiria suas dores, cuidaria, como cuidaram umas das outras.
Quando li Companheiras pela primeira vez, ocorreu-me a seguinte pergunta: Por que Companheiras e não Amigas? Hoje após incontáveis leituras, compreendi o sentido de Companheiras. Amizade é diferente de Companheirismo. A primeira é um sentimento nobre, sem dúvida, mas o segundo se concretiza no plano da empatia. Ser companheiro é partilhar sentimentos, é sentir sem ser. Assim fomos eu e Cristina hoje, assim eram Eneida e suas companheiras.
Recordando Eneida, lembrei de outras Eneidas, com as quais comecei a partilhar sentimentos há pouco tempo, mas que as sinto tão próximas, como se estivéssemos numa cela de Detenção. Transformamos nossos computadores em celas e nossas palavras em sentimentos. Giustina Eneida, Marília Eneida, Ana Eneida, Rosa Eneida, Djanira Eneida, Vanice Eneida, Deyse Eneida, Maith Eneida e tantas outras Eneidas que, com certeza ultrapassam os limites da cela e aqui partilham sentimentos. Não sei se seremos amigas e algum dia lembraremos as página desse recanto, e então seguiremos em direções opostas ou se seremos eternas companheiras como eu e Cristina, mas, por ora, somos apenas companheiras na arte da palavra.