A tradição da matança do porco nas aldeias de Portugal (leitura não recomendada a pessoas muito sensíveis)

“… quantas saudades dos jantares de família! Do

tempo da matança! Os rojões quentes que chiam

no prato! Os sarrabulhos cheirosos!”

(Eça de Queirós)

Neste texto vou recriar a tradição da matança do porco, que, apesar de ser uma tradição, não deixa de ser um ato violento. Por esse motivo recomendo a todos os leitores: se for pessoa muito sensível, por favor, não leia o texto.

A Tradição da matança do porco nas aldeias de Portugal

A festa e os rituais de transformação do porco em alimento

Associadas ao inverno, quando o frio gera as condições propícias necessárias, nas aldeias de Portugal vão-se cumprindo algumas das tradições populares centenárias. Uma delas é a matança do porco (também chamado de reco ou ceva).

Este é um ritual que se repete ano após ano e, apesar das ligeiras introduções técnicas, mantém-se inalterável ao implacável relógio do tempo.

Tradição enraizada na população portuguesa, embora sem a importância que teve outrora, pois tal como muitas outras tradições tem vindo a decrescer de dia para dia.

Pela sua extraordinária fecundidade, extraordinária faculdade de adaptação ao meio e pela entrega total da sua existência ao homem, o porco é o animal de criação mais tradicional em Portugal e a sua carne é a mais utilizada. Paralelamente ao bacalhau, constitui a base da alimentação.

Recentemente, por razões de ordem sanitária e a mando da União Europeia esta atividade da matança tradicional em ambiente doméstico foi proibida. Mas, apesar de ser ilegal ou clandestina, é uma atividade constante de norte a sul de Portugal. Se as autoridades quiserem, podem punir fortemente quem a praticar. Mais cedo ou mais tarde os poderes políticos, poderão colocar um ponto final nas tradições e na identidade de que tanto se orgulha o povo português, condenando-o assim, a uma normalização que me recuso a entender e a perfilhar.

A matança do porco, além da tradição, é também um dia de alegria, de festa e reunião da família. Uma azáfama que envolve também amigos e vizinhos. Todos se fazem presentes para ajudar na matança e para o almoço.

Esta secular tradição, por norma acontece no final do outono e nos gélidos dias de inverno, nos meses de dezembro e janeiro, quando a neve cai e deixa a paisagem branca e congelada.

Quando fervilha o vinho nos barris e as castanhas já muito que foram apanhadas e os castanheiros despiram-se das folhas amarelecidas. Quando a faina agrícola amaina e só a azeitona é rainha e nos olivais já começou a apanha. Quando começam a chegar os primeiros emigrantes para passarem as Festas com as famílias. O porquinho chegou antes da primavera e foi cevado (engordado) com o que a terra deu: milho, figos secos, castanhas, batatas, couves, abóboras, beterrabas e muita fruta. O bicho demora sempre uns dez a doze meses para engordar.

Nesta época de muito frio, com temperaturas por vezes negativas, quase no final do ano, a terra parece querer dormir sob a neve ou a geada, descansando para o novo ciclo de produção que virá com a partir de março, com a primavera.

Já vão longe os anos em que cada casa de família das aldeias ou bairros periféricos das cidades tinham pelo menos um porco para a matança. Famílias numerosas ou ricas, chegavam a matar até 6 ou mais porcos por ano, pois deles estavam dependentes muitas das refeições a fazer durante o ano, mas também algum rendimento para a família, associados à venda dos presuntos (pernil salgado e defumado) e também alguns enchidos (fumeiro).

Antigamente, as matanças definiam as classes sociais, sendo que quem mais porcos matasse durante o ano e quem melhores almoços da matança realizasse, situava-se no topo da hierarquia social das regiões rurais. Os grandes produtores agrícolas – especialmente no setor vinícola - estavam obviamente na lista dos mais abastados.

Com o despovoamento das aldeias, hoje em dia, as matanças são mais escassas.

O dia da matança

Fixa-se a data com antecedência estudada, melhor quando a lua está em quarto crescente, “para a carne crescer na panela” .

Saberes ancestrais transmitidos no seio familiar de geração em geração, enchem de confiança os responsáveis por esta atividade. A prol masculina confia e conhece a habilidade do matador, a prol feminina confia na habilidade da cozinheira, conhecedora dos segredos saborosamente apaladados para a preparação das carnes e fumeiro.

E eis que chega o dia, fatídica manhã, que ainda mal nasceu, gelada como convém, e já começam a chegar os convidados. O matador é quase sempre o primeiro e logo vai colocando na mesa o seu naipe de facas, cutelos, fuzis e machados que irá utilizar na operação de matança e desmancha do animal. Está acostumado a estas andanças, ou não matasse ele quase todos os porcos da aldeia.

Dentro de casa a mesa veste-se gulosamente. Para o mata-bicho não faltam a aguardente bagaçeira, nozes, amêndoas, figos secos, azeitonas, broa de milho e pão de trigo. Na mesa ainda estão carnes do porco do ano anterior, transformadas em petiscos: bom presunto salgado, salpicão e linguiça. Tudo isto acompanhado do bom vinho da casa. Assim desconjurado o frio e preparados para o “crime”, avança-se para o cortelho, onde o porco ainda dorme, quentinho, no seu ninho de palha.

De entre os convivas escolhem-se quatro corajosos que irão apanhar o bicho que jejuou desde a noite anterior. “Convidam” o reco (porco) a dirigir-se ao banco que será o seu leito de morte. A teimosia dos porcos é bem conhecida por todos. Eles nunca vão com palavras, por isso há que lhes apertar o cerco, agarrá-los e levá-los à força. O porco vê estranhos entrarem no cortelho, fica zangado e grunhe. Pobrezito, mal ele sabe o que ainda o espera.

O animal tenta fugir aos agressores que o querem segurar, corre, pára, recua, procura um esconderijo. Sacode a cabeça, grunhe, ronca… enfim, tenta fugir de quem o quer apanhar. O porco é sempre agarrado à mão, no meio de muita algazarra, para depois se lhe colocar uma fina corda entre os dentes. Agarra-lhe a perna, grita um! Prende-lhe a cauda, grita outro! Amarra-o com a corda! Aguenta aí! Éita, que o bicho está endiabrado! Deu-me um coiçe! Cuidado que ele pode morder! A luta é sempre dura e demorada. Ouvem-se guinchos lancinantes. Por fim, já cansado, ofegante, é deitado no banco, espumando abundante saliva e raiva, enquanto seus algozes amarram bem o corpo, pernas e cabeça ao seu leito de morte.

Os quatro escolhidos irão segurá-lo em cada uma das patas e um outro as orelhas, sempre comandados pelo matador que, entretanto afasta quem tenha pena do suíno, não vá o sangue coagular!

Nesta fase os mais sensíveis afastam-se para o lado, assobiando para o ar, e os mais curiosos aproximam-se.

Espera-se que o matador coloque em prática toda a sua habilidade e, que de uma só vez, espete sua enorme faca no pescoço do porco, o que sempre provoca um enorme arrepio em todas as pessoas presentes.

O carrasco desfere então o golpe fatal, rápido e certeiro no coração do porco. O animal solta um urro que se ouve a kilômetros de distância e é o fim. Um fim rápido, como toda a gente quer. Entretanto o sangue, que irá dar lugar à primeira iguaria do dia, jorra para uma bacia onde foi colocado um pouco de vinagre e de sal. Normalmente, uma mulher da família e não a dona da casa, apara o sangue na bacia dando-lhe volta com um ritmo compassado exercido pelo seu hábil braço direito. Não demorará a entrar no pote que já há muito está na fogueira com a água a ferver.

A patroa da casa não toma parte na matança. Está escondida, no seu quarto ou junto do ninho onde o porquinho dormia. Certamente chora a perda de uma amizade conseguida ao longo de vários meses, porque o porco foi o seu inseparável companheiro ao qual dedicou tanto tempo. Tratou das suas enfermidades, chamou o veterinário sempre que foi necessário, deu-lhe remédios, preparou a sua comida com carinho, viu-o crescer e engordar e ele até já conhecia a sua voz. Chegado o momento da matança, embora ela saiba desde o início que aquele animal é destinado ao “sacrifício”, o momento é sempre difícil, porque é simultaneamente emocional.

Lá fora, no quintal, balança-se ainda o porco na luta com a morte. Cada um segura o animal como pode, neste último minuto de agonia. Rapidamente o porco pára de se debater. É sinal de que já está morto. Então os homens pegam fogo à palha. Com calma, vão chamuscando o pêlo do porco e depois a sua pele. Chamuscar o porco consiste em queimar as suas cerdas ou pilosidades, que quase imediatamente são raspadas, procedendo-se ao mesmo tempo à lavagem do animal. Depois, chamusca-se a pele e procede-se da mesma forma à sua raspagem e lavagem. Hoje, o maçarico a gás vai substituindo a palha. Chamuscado o focinho e as orelhas e despojado das unhas, é hora de o virar.

Antes, porém, há que fazer um intervalo para beber um copo de vinho acompanhado de pedaços de sangue do bicho, entretanto já cozido em água e sal e temperado com bom azeite, vinagre, pimentão doce e alho. O petisco vai pelos ares, ou seja, depressa é devorado, enquanto se vão fazendo apostas sobre o peso do bicho. Normalmente um bom porco caseiro, “uma boa ceva”, pesa cerca de 150 kg, podendo ir até 200 kg. E a tarefa vai continuando até não restar um pelo às facas afiadas. Uma dezena de mãos masculinas vão raspando e lavando a pele queimada e algum pêlo que ainda resta.

Todos estes procedimentos são, de forma geral, realizados por elementos do sexo masculino. Durante o ato da matança do porco, a mulher apenas participa no momento em que o sangue do animal é jorrado e ela o apara na bacia, como já foi narrado atrás.

Em muitas regiões portuguesas, mulheres e crianças estão mesmo proibidas de assistir ao ato, não só por questões emocionais, mas também porque diz o saber popular que, estas olham o animal de forma piedosa, condescendente, acompanhadas de palavras como “pobrezinho”, sendo que este comportamento prejudica o desempenho do matador, e prolonga a morte do animal, tornando o momento mais difícil.

Continua-se com o banho, com a ajuda de pedaços de cortiça e pedras de granito para raspar bem o couro e de facas afiadas para a teimosa e dura barba.

Esfrega-se com sabão e água em abundância, pois o reco tem que ficar bem lavado. O resultado final é excelente, pois o couro do porco fica quase tão branco como a neve. É virado de barriga para cima e o matador, com perícia de cirurgião prepara-se para a delicada cirurgia, realizada com faca bem afiada.

“Se queres conhecer o teu corpo, mata o teu porco!”, é um ditado popular que muito se ouve em Portugal. É também o passo seguinte para as mãos do matador. Um trabalho que precisa ser feito com grande mestria.

Ele faz uma incisão no abdómen e no tórax do animal para retirar todas as as vísceras e órgãos.

É chegado o momento de retirar as tripas (intestinos), operação que requer alguma atenção de modo a que nada se rebente. Alivia-se também o corpo da primeira carne, que vai para os potes de ferro que já a esperam, no fogo.

Depois de depositadas as tripas em grandes bacias, serão posteriormente lavadas pelas mulheres da famíla, de preferência no rio ou num ribeiro que leve corrente, para que mais tarde lhes seja dado destino, conforme o tipo e a qualidade: intestino delgado para chouriços e alheiras; intestino grosso para salpicões; estômago e bexiga para os butelos, que depois de prontos irão secar e curar suspensos em varas no fumeiro da enorme chaminé tradicional.

Coração, fígado, rins, alguns pedaços da barriga eram aproveitados para o almoço da matança.

Depois de esventrado o reco, este deve ficar dependurado, na vertical, pelo menos durante um dia e uma noite, antes de ser desmanchado. O porco vai ser transportado para a adega da casa para ser dependurado duma viga forte. Aí é içado com cuidado e pendurado com uma corda ligada ao xambaril (peça de pau resistente em forma de til e com duas cavas nas extremidades, para segurar bem os tendões do porco). Todo o sangue escorrerá das carnes, como convém, e o frio irá secá-las e torná-las mais rijas.

Os homens terminaram sua difícil tarefa. Algumas horas passaram e agora é preciso dar algum conforto ao corpo. Uma breve passagem pela fogueira para aquecer por fora porque por dentro, já o tinto se encarregou de o fazer durante toda a manhã.

Aproxima-se a hora do almoço. Com ela vem também a confraternização, razão senão principal, pelo menos importante, pela qual foi sacrificado o animal.

Entretanto, na cozinha está a ser preparado o manjar. Na panela vão derretendo os torresmos. Pedaços de carne entremeada da barriga e do fígado que foram retirados na desmancha, grelham nas brasas. O sarrabulho só espera a água a ferver. Em algumas regiões do país prepara-se o sarrabulho. Este prato tradicional da gastronomia portuguesa é preparado com pão cortado em pequenas fatias ao qual se junta o sangue cozido. Leva também açúcar, noutras terras alho. Sobre todo este sólido cai água a ferver. E aí está o famoso sarrabulho que, em algumas terras chega a dar o nome a este dia festivo rural: a festa do sarrabulho.

Todas as pessoas presentes almoçam e confraternizam. E, “merenda comida, companhia desfeita”, terminado o repasto cada um recolhe a sua casa.

Algumas famílias ainda conservam o bom costume de "dar o prato". Consiste em dar aos familiares próximos e amigos, um prato com carne, sangue, costeleta, fígado e barriga do porco, para que todos provem da matança.

Com este gesto - oferecer sete ou oito pratos de carne - ganha-se carne durante sete ou oito semanas, sendo que, quando cada uma dessas pessoas fizer a sua matança, virá trazer, fresquinha, a carne do seu porco, retribuindo o gesto e o prato. Salutar e inteligente este hábito comunitário com origem em tempos imemoráveis.

Do porco tudo se aproveita: desde as tripas, à bexiga, nada é desperdiçado.

A carne obtida deste animais criados em casa, é completamente diferente em textura e sabor daquela carne de produção industrial que compramos nos talhos ou açougues. Estes animais criados com produtos naturais fazem toda a diferença.

Um ou dois dias depois, procede-se à desmancha, ou seja, desfaz-se o porco. Normalmente é o matador que realiza esse trabalho da desmancha que obedece a cortes precisos para aproveitamento de todo o animal. Meticulosamente, cada pedaço de carne dá o seu melhor para a salgadeira ou para o fumeiro.

Seguidamente vem a salga. A salga ou salgamento é o método de conservação da carne com sal. Aquele que foi o matador, foi depois desmanchador e agora será também salgador. Ele conhece toda a técnica. Corta-se a cabeça do animal, destacam-se as «mantas» de toucinho e separa-se a carne segundo o uso e as necessidades, variáveis de casa para casa ou de família para família.

Colocam-se as pernas, espáduas, cabeça, orelhas, pés e ossos da espinha numa grande salgadeira (grande caixa feita de madeira que serve ano após ano para o efeito) e envolve todos os pedaços em sal com abundância. Este método conserva a carne durante meses e dá-lhe um agradável sabor. Outrora o sal era a salvação da carne, pois não existiam geladeiras. . Uma camada de carne outra de sal, assim até ter toda a carne dentro da salgadeira. Tudo é bem apertado e calcado com as mãos, assim a carne ficará bem isolada, bem apertada e bem salgada, mantendo-se bem branca e saborosa durante todo o ano. Até na linguagem do povo das aldeias se dizia que a "salgadeira era o governo da casa todo o ano".

Livram-se apenas da mortalha do sal o lombo e algum pedaço da barriga que serão transformados em diferentes enchidos.

A carne do lombo e alguma carne da barriga são cortados em pequenos pedaços que se colocam em alguidar ou bacia e temperadas com sal, vinho branco ou tinto, colorau, alhos e louro. Assim permanecerá a carne neste “vinha d´alhos” a carne durante cinco ou seis dias, para que possa absorver o tempero. Depois convocam-se as mulheres da família, para proceder ao enchimento das tripas do porco, que foram bem lavadas e “esterilizadas” com bastante aguardente bagaçeira, alho, limão laranja e loureiro.

Resultarão belos salpicões, paio e linguiças. Serão feitos também: alheiras, morcelas, farinheiras e butelos, conforme as tradições de cada casa e de cada região. Todo o fumeiro, tal como o nome indica, é posteriormente exposto ao fumo para conservação do mesmo, o que também lhe vai conferir características únicas.

E depois de algumas noite de "enchimento", ficam as casas rurais apetrechadas com condimento delicioso para o ano inteiro. Estes enchidos são a riqueza de um povo e fazem da salsicharia tradicional portuguesa um património de reconhecidos valores, historias, receitas e paladares. De fato, não se pode falar de gastronomia portuguesa sem mencionar a variedade de enchidos que de norte a sul do país enriquecem os roteiros e menus gastronómicos, e satisfazem a boca e o estômago de quem aprecia boa comida.

Dura a faina da matança oito dias bem contados. Durante eles transborda a mesa de carnes. Pobres dos estômagos de quem, sem ter nascido e vivido nestes costumes, se atrevem a misturar-se nas suas intimidades.

É normal depois da matança do porco, haver já na pocilga um outro menor, geralmente um leitão acabado de desmamar que irá também engordar, recomeçando o ritual para a matança do ano seguinte.

Antigamente, nas aldeias de Portugal ter um porco era uma benção, estava nele a garantia de comida para muito tempo, para toda a família.

Já vi matar muitos porcos desta forma tradicional. Não se pense que a morte do porco é rodeada por extremos de malvadez e desejos sádicos de o fazer sofrer. Tudo isso faz parte de um ritual a que a prática ancestral deu razão de existir.

Embora a morte tenha em si mesma um forte componente simbólico, o fato é que, para que o porco deixe de ser animal e passe a ser carne e/ou alimento, a morte é um recurso obrigatório.

E assim termina esta pequena narração sobre a matança do porco, tradição secular do meu país, a que eu assisti várias vezes na minha aldeia, em Trás-os-Montes.

Os tempos mudam, as tradições vão acabando, mas ficam as recordações dos bons velhos tempos.

Ana Flor do Lácio (20/12/2010)

Ana Flor do Lácio
Enviado por Ana Flor do Lácio em 21/12/2010
Reeditado em 21/12/2010
Código do texto: T2683336
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