A libertação de Françoise

Françoise está dentro de um terno Alexander Mcqueen. Tem cheiro de Viktor e Rolf e calça Gucci. Françoise não é ele mesmo. É um aglomerado de pessoas.Afinal, o que é Françoise?

As luzes da noite vão morrendo, à medida que entramos mais fundo nos porões. E por dentro do terno, há tiras de couro que ferem, argolas metálicas e uma infinita disposição para a dor.

Mas aqui em cima, na superfície, prevalece o artista. Aquele que alfineta a barra de um vestido com 17 metros de tule azul, milagrosamente vestido numa russa de nome impronunciável. Françoise é a inquietude.

O tempo se flexiona e é ele que determina os personagens de um homem só. A um instante a frieza de um artista para abate e consumo e em outro momento, o escravo de vícios tão perturbadores, que me fazem sentir menos ordinário.

Françoise se esconde da luz, como eu me escondo da dos efeitos de uma vodka barata. Mas consigo divisá-lo, mesmo assim, entrando sorrateiramente no bar , se assentar numa mesa afastada, e pedir alguma bebida de nome muito criativo. E nesses momentos, sempre há um palco. Alguns que dançam e outros que esperam a morte, e a falta de solução que a própria vida impõe. Azar de quem para pra pensar nessas coisas....

Horas depois surge Zak, apropriadamente apelidado de The bear e ambos se retiram em seguida para os porões.

E partir daí, tento exumar tudo o que já escrevi antes, para aliviar minha crise de consciência.Tento dar ao futuro, as duas meninas que tomam chá, entediadas no jardim, ou apenas insultos inofensivos, na forma de poemas irresponsáveis.Mas o que há de mal dentro das pessoas, fatalmente corrói até a insanidade. Então, não posso me desligar do que acontece lá embaixo. Do terno Mcqueen esfacelado, das mãos amarradas. O couro produz marcas vermelhas no corpo e enquanto isso, mães de família resignadas, preparam um assado no forno, rezam uma Ave Maria e fumam um cigarro escondido.

Meu coração ficou preso em alguma estaca, quando da caçada aos escritores proscritos. Mesmo assim, não posso deixar de me comover quando me recordo da eletricidade percorrendo o corpo ou do chicote desenhando as iniciais de um nome, nas costa.

Os porões acumulam fungos. E mais que isso. Gritos, e uma senha secreta, que daria fim ao espetáculo do urso.Mas quem sou eu para julgar? O mais perverso dos expectadores? Vejo o ballet se desenvolver de maneira tão original, que chega a ser belo perceber micropartículas de sangue ao som do Cisne de Tuonela.

Bebo minha vodka barata, para não ter que pensar em Marie Laure dormindo sozinha em lençóis histericamente limpos, por ter se cansado de esperar Françoise. Desfile de inverno, ele dirá...

O urso não é gente. O urso é apenas um animal.E é esse animal pago que justifica a humanidade torturada de Françoise. O que, de fato, restou de um corpo engaiolado dentro de um Mcqueen? Só a estrutura. Tudo o que é lícito ficou por fora. Mas este corpo, foi projetado para a dor.

Lá em cima, alguém ousa cantar Piaff. Quase posso ver também, o espírio de Gabrielle se prostituindo com falsa ingenuidade, tão calculista quanto um homem moldado para isso. É só ilusão. O que conta é o real. A explosão final após horas de ballet, e a roupa vestida rapidamente.

Os sapatos Gucci sobem as escadas. Françoise deixa para traz algum valor em dinheiro que não posso determinar, e toma um último gole do drink. Agora, é voltar para casa e ser um tanto normal. Amanhã, voltar ao trabalho e tentar se inspirar em alguma coisa, para criar o verão que os cães de óculos escuros, no fim da passarela, esperam para esquartejar, seviciar e publicar para um mundo de imbecis.

O urso não pensa, mas amanhã quando acordar, estará resignado com sua vida de funcionário do sistema. Um olhar caído, até desanimado, como que esperando morte chegar...Domesticar instintos exige esse desprendimento. Isso só pode ser uma piada grosseira. Eu até apoio....

Paris nunca esteve tão bela, quanto nessa época do ano. Há uma certa melancolia na Place Vendome, que me comove até quase as lágrimas. E prefiro pensar que somos todos sensíveis, para apreciar tudo isso, e o que vai no subsolo do meu coração.