Bloqueio Criativo
Ele está cansado do dia que teve. Trabalho, cobranças, trânsito, contas... Deve dormir, senão passará o dia seguinte inteiro bocejando e de mau-humor, amaldiçoando a si próprio por não ter ido se deitar mais cedo. Mas tem algo que o afasta do descanso que sua cama propicia - a mesma cama que ele passa todas as horas longe de casa pensando. Senta à mesa do computador, liga o tocador de música e fica olhando a tela branca do editor de textos. Franze o cenho e arrisca uma palavra - qualquer uma, pois sempre precisou somente da primeira. A palavra sai e as que se desenrolam em seguida desagradam-no, fazendo com que ele dê ctrl+a e aperte o delete depois dê ctrl+c em dois espaços em branco, deixando no ctrl+v a cópia do que passa na sua cabeça: nada. Nada que valha a pena ser escrito. Vai falar do quê? Do seu dia comum? Da barba que não quer fazer? Do sexo que há tempos não pratica? Do amor que brota em seu peito e que não é correspondido? Assuntos batidos. Arrisca outra palavra e, novamente, faz o processo de apagá-la, junto com suas palavras subseqüentes. Se vê incapaz de lidar com a sua ausência de pensamentos. Aonde foi a sua necessidade catártica, aquele filtro que usava com as palavras para purificar a sua alma suja? Sai do quarto resmungando e vai até o banheiro colocar pra fora toda a cerveja que consumira enquanto esperava algo de aproveitável brotar de seus dedos. A urina sai fumegante e ele se regozija com o alívio que aquele simples e natural ato o proporciona. Deveria ser assim com o que escreve: sair naturalmente e proporcionar o belo e peculiar alívio de colocar o ponto final naquele monte de palavras enfileiradas e sentir as mãos tremendo de excitação logo após a primeira leitura. Sacudiu seu órgão e foi lavar as mãos. Quando pegou o sabonete uma barata enorme se desprendeu dele e desceu pela borda da pia até o frio azulejo e se enfiou atrás da privada. Abriu a torneira, lavou as mãos e ficou contemplando o redemoinho que fazia na pia. Lembrou-se de algum programa de televisão onde um cientista maluco com seu assistente, um homem gordo vestido de rato, fazia experiências simples e mirabolantes e dissecavam muitos mistérios do Universo. Por que a água sempre gira pro mesmo lado quando desce por ralos? Por que se o ovo fica três dias dentro de um pote com vinagre ganha a elasticidade de uma bola de borracha? Olhou-se no espelho e se deprimiu com as veredas que sua mente seguia. Voltou novamente pra frente do computador. Talvez o problema fosse esse: o computador. Muita informação fácil, instantânea e resumida. A concisão abreviando pensamentos mais profundos. Pensamentos rasos e imediatos jorrados aos borbotões na internet causando uma epidemia de empreguiçamento mental. Gostaria de ter nascido na época onde os escritores escreviam à pena ou mesmo em grandes e barulhentas máquinas de escrever, em longas escrivaninhas, rodeados por clássicos da literatura, garrafas cheias e vazias e gatos, isolados em algum apartamento medíocre no centro de grandes cidades ou em alguma suntuosa fazenda longe de tudo. Tentou escrever à caneta mas a palma da sua mão doía e ficava paralisada na região do polegar. E a culpa era daquele trabalho ingrato que exercia à contragosto, onde prostituía seu tempo pelo seu tempo. A impressão que tinha era essa: de ser uma meretriz de sua própria existência. Vendendo um tempo executando tarefas que o enfadonhavam para angariar ganhos para se sustentar. Tentou outra palavra. Não foi. Foi até a cozinha e preparou um café. O cheiro do café o agradava. A história do café. A representatividade do café. E se escrevesse sobre o café? Descartou a idéia após queimar a língua e vociferar uma torrente de praguejações digna de um cafetão irritadiço. Voltou novamente pro teclado segurando o queixo. Repousou a caneca de café ao lado do teclado. Jogou duas pedras de gelo dentro que pipocavam. Pipocavam? Por que pipocavam? "Pipocavam"? Que palavra ridícula! Onde foi parar aquele cientista maluco de jaleco verde para explicar o por quê das pedras de gelo ficarem "pipocando" quando jogadas em canecas de café quente? Olhou para o relógio. Lembrou-se de que tinha uma entrevista de emprego no mesmo dia. Sim, não seria no dia seguinte, pois já era alta madrugada e ele teria poucas horas para dormir. Teria que acordar cedo para se barbear, imprimir seu currículo ridículo, colocar uma roupa social ridícula e pegar o trem lotado até o outro lado da cidade para tentar a sorte num lugar que poderia ser o pontapé inicial para a realização de alguns dos seus sonhos. E se escrevesse sobre o nervosismo que ficava sempre que tinha essas entrevistas de empregos que lhe salvariam a pele? "Não, outros já fizeram isso", pensou ele. A tela branca continuava na sua frente. Branca, com aquele tracinho piscando, esperando ser o guia dos pensamentos que poderiam ser exteriorizados num brusco rompante de inspiração movida pelos mais profundos sentimentos, tais como medo, ódio, amor ou estados psicológicos derivados de tristezas incrustadas em seu âmago, prontas para serem escalavradas com o derrame de palavras. Olhou novamente para o relógio. Teria somente quatro horas para dormir. Suspirou. Sentiu que perdia algo de especial em si próprio. Algo inefável que passou toda a vida sem saber que era capaz de possuir. Talvez não fosse algo propriamente seu. Talvez fosse algum espírito que se apossou de seu corpo para disseminar alguma mensagem que já fora dada e, com isso - com a missão do suposto espírito concluída - foi largado ao desuso habitual que sempre foi o seu passar dos dias. Choramingou, fechando as janelas dos programas de computador. Preferia não ter descoberto que era capaz de amolecer o coração das pessoas ou despertar nelas vontade de viver, mesmo quando o que escrevia denunciava a sua gradativa renúncia à própria vida - sendo o suicídio uma eterna constante em suas personagens. Por fim, desligou o computador, colocou o celular pra despertar e foi até o banheiro para execrar os resquícios de cevada de seu organismo. Metade da barata podia ser observada na parte de trás da privada. Mirou lá e disparou sua urina. O bicho se moveu com uma agilidade impressionante, saindo do seu esconderijo na privada e escalando as paredes de cerâmica. Correu até a pia, encheu a boca d'água e começou a disparar nos ladrilhos que a barata logo alcançaria. A água escorreu e a barata escorregou, caindo direto no chão com as suas perninhas pra cima. Ficou de cócoras logo acima do aflito inseto e se colocou a observá-lo. Lembrou-se de uma aula de Biologia Aplicada no Segundo Colegial onde os alunos dissecariam baratas. Disparou um pequeno jato d'água no rosto do animal. Suas perninhas faziam o possível para caminhar no teto turvo que observava em sua agonia. Ela queria sobreviver. Apesar da queda e da urina, ela sobrevivera. Sobreviveria se uma bomba atômica explodisse e varresse essa cambada de cagalhões que cavam sua cova cósmica arreganhando o buraco da camada do ozônio. Não seria um escritor diletante sofrendo de bloqueio criativo que poria fim naquela raça. Poderia acabar com aquele indivíduo ali, mas aquele indivíduo poderia ter trepado durante toda a sua longa noite de barata e sua fêmea poria dez mil de sua espécie no mundo em poucos dias. Levantou e escovou os dentes, sempre de olho na barata. Ela mexia a cabecinha e as antenas e abria e fechava aquela espécie de presas. Enxaguou a boca e se olhou no espelho. Espremeu alguns cravos da testa, sorriu pro seu reflexo e novamente ficou de cócoras acima da barata. Pegou-a por uma das antenas e se levantou, segurando-a na altura dos olhos. Saiu do banheiro, abriu a porta que dava para o quintal e deixou o inseto no chão, que bateu em retirada sem titubear um milésimo de segundo que fosse e se enfiou atrás de um vaso de Espadas de São Jorge. Lembrou-se de uma surra que levou da avó na infância com uma espada daquelas. Não se recordava do motivo, mas lembra perfeitamente que tirou um bom cochilo depois das lambadas e acordou sendo mimado com arroz doce com canela. Sempre que se deparava com a iguaria, a Espada de São Jorge e o ardido no rabo lhe invadiam a mente. Fechou a porta, conferiu se o despertador do celular estava programado e se enfiou embaixo do cobertor. "Acho que se eu conseguir dormir umas 15 horas seguidas, consigo voltar a escrever algo que me soe bem". Esse foi seu último pensamento do seu longo dia, pois logo estava sonhando que estava dentro de um avião, olhando pela janela as finas camadas de nuvens cobrindo uma cidade litorânea bem ao norte, bem ao norte, bem ao nort...