Acredito sim. Até porque não tenho gosto de duvidar das pessoas assim, de puro desacreditar. Mas, olha, esse meu coração aqui, mas é nunca, nunquinha que tinha sentido essa dor. Parece que tem um anzol fincado dentro do peito, fisgando, num sabe? Eu sei que poucas pessoas vão entender. Tanto faz. Sei mesmo é que meu coração tá que nem céu de trovoada: preto, num sabe? De sangue macerado, estancado, pegado que nem cola dentro de mim. Sangue que nem corre nas veias não. Parou tudo aqui dentro. Como se também eu estivesse morta pelo avesso, num sabe?
Perdi foi os olhos de minha morada. Meu fiel companheiro, Eu morava naquele olhinho caramelo, que me seguia de milímetro de pegada. Num tinha um gesto, um movimento feito que fugisse dele. Num tinha. Agora, eu não moro nos olhos de ninguém. Agora ele que mora nos meus. Enxergando sem ver. Assim que estou, num sabe? Lembro dele piquititinho, no meu colo, com aquele cheirinho de lenço de papel. Era uma lindeza!
A gente se escolheu juntinho. Tinha mais de cinco pra joeirar, mas olhei de pronto pra ele, na mesmo horinha que ele animou e veio lamber meu pé. Estava feita a nossa jura de amor. Nem chorou de noite! Dormiu encostadinho no meu corpo. E eu aproveitei, porque sabia que era por pouco tempo. Sabia pelo tamanhão das patas dele. Parecia até pata de um leão. E foi. Mais um tantinho depois, já estava da altura da cama. mas num teve uma só noite, um só dia de separação. Ele no canto dele e eu no meu, mas a gente vivia mesmo acorrentado, um no outro.
Quando eu saia, ele ia atrás. Se eu mudava a roupa ele já sabia que eu ia sair. Esperava eu voltar no mesmo lugar. E então vinha ele, saracoteando o rabo se espremendo por minhas pernas e mãos. Fico até encrespada quando lembro, num sabe? E eu fiz de tudo para que meu companheiro, se era hora de ir, fosse em paz. E nesse tempo todo de cuidado, continuei foi morando naquele olho caramelo, que me levou junto. E que falta, que falta tá me fazendo! Mirramos junto, num sabe? Alcançamos os brancos do tempo, a lerdeza dos movimentos, a serenidade das rugas, um com o outro, ali.
Olha, num tenho vergonha de chorar por ele, não. Tem gente que não liga. Eu não. Tô sentida! Minha carne tá amarga e magoada como um dedo que se prendeu numa porta de cedro, num sabe? Se passar a mão – mesmo de levinho! – dói, aquela dor aguda, num sabe? E eu tenho certeza que se fosse eu a ir embora, ele ia sentir a mesma coisa. Quem tem um cão sabe o que é ter um amor assim. Eu tive, num sabe? Eu tive!