Minha grande enorme família (pai , mãe, irmãos, irmãs, sobrinhos, sobrinhas, filho...) nos preparativos para celebrar o Natal em 2009.
Memória Afetiva da Fartura
Nasci numa família numerosa, como tantas no nordeste. Do lado paterno, nossa avó teve 12 filhos, do lado materno nossa avó teve dezessete filhos e nossa mãe, repetindo o ciclo, teve dez. Hoje, desses dez, sete tem filhos e quem teve muito, teve três. Aprendemos a ser modernos.
Nasci e cresci na roça. Mãe professora de escola rural, cozinheira, costureira e professora de suas filhas em todos esses ofícios, porém cada uma com seu talento e no seu tempo... Apenas me interessei pela culinária, de verdade, quando assumi minha própria casa, minha cozinha “experimental.”
Meu pai, descendente de uma família de pequenos proprietários de terra, sempre trabalhou muito para o sustento da casa e a fartura de grãos, de frutas, de leite fresco é uma lembrança marcante em minha vida. Lembro com alegria que tudo lá em casa era multiplicado por 12 e ainda sobrava, mas havia sempre os bichos domésticos para aproveitar essas sobras e jamais convivi com o desperdício.
Se bem me lembro, não convivíamos com dinheiro, pelo menos não da forma que o utilizamos hoje. Na nossa casa a base da comida vinha do que se plantava, e a “mistura”, do quintal (galinhas, patos, perus e até galinha de angola). Nos fundos da casa se plantava os temperos básicos: cebolinha, coentro, pimenta malagueta, pimentão, couve, abóbora, tomate, maxixe, quiabo. As ervas de cheiro (manjericão, alfavaca, erva doce...) eram plantadas, mas pouco usadas na culinária. Um ou outro prato era preparado utilizando esses temperos.
Meu pai sempre foi muito generoso e solidário com as necessidades humanas. Nunca o ouvi dizer não a quem o procurasse para pedir emprestado farinha, feijão, milho e, em especial, o leite, mesmo no período da estiagem quando ele precisava reduzir a quantidade para o nosso consumo, para não sacrificar os bezerrinhos e suas mães, vez que o pasto era escasso.
- Venha! A comida aqui dá de sobra! - dizia meu pai a qualquer pessoa que aparecesse nos horários das refeições. Ele convidava, insistia para que sentasse à nossa mesa. Alguns aceitavam, outros não, e a visão da fartura em nossa casa sempre esteve associada ao que se plantava e ao que se colhia, sem nenhum desperdício. Até hoje é assim. Quem passa por nossa casa, certamente prova da hospitalidade, da gentileza beirando o exagero de meus pais.
Minha mãe era a economia em pessoa. Sempre preocupada com que nada nos faltasse, trabalhava fora e, vez ou outra, inventava uma comida diferente, porém seu forte não era a cozinha e tão-logo fomos crescendo, essa tarefa ficou mais com minhas irmãs e eu, quando solicitada a ajudar. E até hoje quem volta para uma visita ou mesmo para uma ocasião especial, assume a cozinha em todas as refeições.
Da feira semanal, na cidadezinha mais próxima, vinha a carne de boi fresca, o arroz, o macarrão, o pão, alguns tipos de verduras e materiais de higiene e limpeza. Duas vezes no ano comprava-se roupa e calçados para toda a família. Era uma festa! Antes do São João e antes do Natal íamos à cidade escolher tecidos, aviamentos e o calçado que acompanharia o conjunto. Para o dia a dia minha mãe costurava, mas a roupa de festa ia para alguém mais experiente.
A imagem de qualquer desperdício, em especial de alimentos, me incomodava e ainda me incomoda muito. Jamais convivi em minha família com o fantasma da fome, mas também nunca deixei de olhar para os lados e imaginar ou ver quantos amanheciam e ainda amanhecem nesta cidade, nesse estado e nesse país sem ter o que comer.
No seio de minha família aprendi a ter respeito pelo alimento que colocamos na nossa dispensa, na nossa mesa. Causa-me desconforto a ostentação, o desperdício das comemorações nas grandes datas. Sempre fico pensando em quantas famílias não alimentaríamos só com as sobras dali...
Somos o que somos. Inevitável não pensar em quem tem muito menos que eu e como encontrar uma forma de ajudar. E assim, quase de brincadeira, passei a me interessar por sobras de alimentos, pesquisar sobre reaproveitamento... Em casa pensava no que fazer com que sobrava do almoço, já que não cultivávamos o hábito do jantar. Se não serviria para o almoço novamente, o que fazer?
Comecei então a coletar algumas receitas, inventar outras. Sei que o que sobra para alguns falta para outros e é uma heresia simplesmente jogar fora. Passei a trocar figurinhas com amigas e amigos que se interessavam pelo assunto, que gostavam de experimentar. De todos os lados chegaram contribuições, dicas...
Também conheci programas como o Mesa Brasil do SESI, o trabalho de ONGs como o Banco de Alimentos (SP), o pessoal da Pastoral do Menor, o empenho de muitos e muitas na luta contra a miséria e a fome, contra o desperdício.
Gosto de receber amigos em minha casa e nesses momentos, além de sobrar alegria, SOBRA comida e muita comida de sobra... E, no dia seguinte, lá estou eu “inventando moda” com as sobras!
Tenho especial predileção por talos, cascas, folhas, sementes. A sobra da fruta da época, do fim da panela do arroz, do feijão, do cuscuz, da macaxeira, do inhame, da abóbora, da batata doce, do milho, alimentos tão comuns na mesa brasileira, em especial, nordestina. Minhas visitas, invariavelmente “viram” cobaias, desculpem, mas por amorosidade e carinho comigo, nenhum jamais reclamou de maus tratos ou indigestão.
Aos poucos, quando me sobra um tempinho, estou catalogando, organizando as contribuições que recebi e recebo. Quero deixar registradas minhas pesquisas, reflexões, curiosidades, dicas e até algumas receitas de reaproveitamento do que sobra na hora do preparo de algum alimento, daquilo que sobra das nossas refeições, em uma publicação, quem sabe. Com carinho e cuidado, respeitando autorias, mas acrescentando detalhes ao que considero importante.
Todas as colaborações serão bem vindas... Dicas, receitas, sugestões. E não duvide que dessa cabeça loura saia ideias bem interessantes...
Gosto de pensar que estou esbanjando apenas carinho, afeto, alegria.
Maceió, 19 de dezembro de 2010.
Memória Afetiva da Fartura
Nasci numa família numerosa, como tantas no nordeste. Do lado paterno, nossa avó teve 12 filhos, do lado materno nossa avó teve dezessete filhos e nossa mãe, repetindo o ciclo, teve dez. Hoje, desses dez, sete tem filhos e quem teve muito, teve três. Aprendemos a ser modernos.
Nasci e cresci na roça. Mãe professora de escola rural, cozinheira, costureira e professora de suas filhas em todos esses ofícios, porém cada uma com seu talento e no seu tempo... Apenas me interessei pela culinária, de verdade, quando assumi minha própria casa, minha cozinha “experimental.”
Meu pai, descendente de uma família de pequenos proprietários de terra, sempre trabalhou muito para o sustento da casa e a fartura de grãos, de frutas, de leite fresco é uma lembrança marcante em minha vida. Lembro com alegria que tudo lá em casa era multiplicado por 12 e ainda sobrava, mas havia sempre os bichos domésticos para aproveitar essas sobras e jamais convivi com o desperdício.
Se bem me lembro, não convivíamos com dinheiro, pelo menos não da forma que o utilizamos hoje. Na nossa casa a base da comida vinha do que se plantava, e a “mistura”, do quintal (galinhas, patos, perus e até galinha de angola). Nos fundos da casa se plantava os temperos básicos: cebolinha, coentro, pimenta malagueta, pimentão, couve, abóbora, tomate, maxixe, quiabo. As ervas de cheiro (manjericão, alfavaca, erva doce...) eram plantadas, mas pouco usadas na culinária. Um ou outro prato era preparado utilizando esses temperos.
Meu pai sempre foi muito generoso e solidário com as necessidades humanas. Nunca o ouvi dizer não a quem o procurasse para pedir emprestado farinha, feijão, milho e, em especial, o leite, mesmo no período da estiagem quando ele precisava reduzir a quantidade para o nosso consumo, para não sacrificar os bezerrinhos e suas mães, vez que o pasto era escasso.
- Venha! A comida aqui dá de sobra! - dizia meu pai a qualquer pessoa que aparecesse nos horários das refeições. Ele convidava, insistia para que sentasse à nossa mesa. Alguns aceitavam, outros não, e a visão da fartura em nossa casa sempre esteve associada ao que se plantava e ao que se colhia, sem nenhum desperdício. Até hoje é assim. Quem passa por nossa casa, certamente prova da hospitalidade, da gentileza beirando o exagero de meus pais.
Minha mãe era a economia em pessoa. Sempre preocupada com que nada nos faltasse, trabalhava fora e, vez ou outra, inventava uma comida diferente, porém seu forte não era a cozinha e tão-logo fomos crescendo, essa tarefa ficou mais com minhas irmãs e eu, quando solicitada a ajudar. E até hoje quem volta para uma visita ou mesmo para uma ocasião especial, assume a cozinha em todas as refeições.
Da feira semanal, na cidadezinha mais próxima, vinha a carne de boi fresca, o arroz, o macarrão, o pão, alguns tipos de verduras e materiais de higiene e limpeza. Duas vezes no ano comprava-se roupa e calçados para toda a família. Era uma festa! Antes do São João e antes do Natal íamos à cidade escolher tecidos, aviamentos e o calçado que acompanharia o conjunto. Para o dia a dia minha mãe costurava, mas a roupa de festa ia para alguém mais experiente.
A imagem de qualquer desperdício, em especial de alimentos, me incomodava e ainda me incomoda muito. Jamais convivi em minha família com o fantasma da fome, mas também nunca deixei de olhar para os lados e imaginar ou ver quantos amanheciam e ainda amanhecem nesta cidade, nesse estado e nesse país sem ter o que comer.
No seio de minha família aprendi a ter respeito pelo alimento que colocamos na nossa dispensa, na nossa mesa. Causa-me desconforto a ostentação, o desperdício das comemorações nas grandes datas. Sempre fico pensando em quantas famílias não alimentaríamos só com as sobras dali...
Somos o que somos. Inevitável não pensar em quem tem muito menos que eu e como encontrar uma forma de ajudar. E assim, quase de brincadeira, passei a me interessar por sobras de alimentos, pesquisar sobre reaproveitamento... Em casa pensava no que fazer com que sobrava do almoço, já que não cultivávamos o hábito do jantar. Se não serviria para o almoço novamente, o que fazer?
Comecei então a coletar algumas receitas, inventar outras. Sei que o que sobra para alguns falta para outros e é uma heresia simplesmente jogar fora. Passei a trocar figurinhas com amigas e amigos que se interessavam pelo assunto, que gostavam de experimentar. De todos os lados chegaram contribuições, dicas...
Também conheci programas como o Mesa Brasil do SESI, o trabalho de ONGs como o Banco de Alimentos (SP), o pessoal da Pastoral do Menor, o empenho de muitos e muitas na luta contra a miséria e a fome, contra o desperdício.
Gosto de receber amigos em minha casa e nesses momentos, além de sobrar alegria, SOBRA comida e muita comida de sobra... E, no dia seguinte, lá estou eu “inventando moda” com as sobras!
Tenho especial predileção por talos, cascas, folhas, sementes. A sobra da fruta da época, do fim da panela do arroz, do feijão, do cuscuz, da macaxeira, do inhame, da abóbora, da batata doce, do milho, alimentos tão comuns na mesa brasileira, em especial, nordestina. Minhas visitas, invariavelmente “viram” cobaias, desculpem, mas por amorosidade e carinho comigo, nenhum jamais reclamou de maus tratos ou indigestão.
Aos poucos, quando me sobra um tempinho, estou catalogando, organizando as contribuições que recebi e recebo. Quero deixar registradas minhas pesquisas, reflexões, curiosidades, dicas e até algumas receitas de reaproveitamento do que sobra na hora do preparo de algum alimento, daquilo que sobra das nossas refeições, em uma publicação, quem sabe. Com carinho e cuidado, respeitando autorias, mas acrescentando detalhes ao que considero importante.
Todas as colaborações serão bem vindas... Dicas, receitas, sugestões. E não duvide que dessa cabeça loura saia ideias bem interessantes...
Gosto de pensar que estou esbanjando apenas carinho, afeto, alegria.
Maceió, 19 de dezembro de 2010.