Caros leitores,

            Nos últimos anos passei por diversas dificuldades. Vivi entre crises existenciais, emocionais e problemas com a saúde. Porém, não posso negar a grande importância disso tudo, afinal, pude referendar a certeza da ótima família e dos bons amigos que tenho.

            Um deles, Paulo Gentil, amizade relativamente nova, me ensinou muito com suas palavras e exemplos de vida. Hoje, vejo o amigo triste e me sinto tão fraco por não saber fazer algo para ajudá-lo ou que ao menos diminua sua dor. Os bons amigos do Paulo sabem da ligação que ele tem com o pai e podem imaginar o seu sofrimento. Sim, a dor é dele.

            A lutar é o maior aprendizado de tantos que construí incentivado pelo amigo. Sempre tive a certeza de que as afirmações, por ele ditas, não eram apenas para acalmar-me: o cara é forte mesmo. Em meio de lágrimas, aprendo outra vez ao ler um dos seus textos que, provavelmente, fora escrito no hospital enquanto acompanha o tratamento de seu pai.  Obrigado por tudo caro amigo.

            Segue cópia da correspondência:
 
“Segue mensagem longa, mas extremamente importante para mim. Leia com paciência…
 
    Isso não é uma corrente, e nem tem pretensão de ser uma mensagem que roda a internet e que vai causar mal a quem não a encaminhar. É apenas uma forma que encontrei de dizer como eu me sinto. Recentemente mandei uma mensagem pedindo ajuda de doação de sangue para meu pai e muitos me perguntam como andam as coisas. Infelizmente não andam bem. Tudo tem sido muito difícil e corrido, agora meu pai está na UTI pela quarta vez, desacordado e respirando por meio de aparelhos. Continuamos lutando. Nesse momento suas preces, orações e pensamento positivo são ainda mais importantes… escrevi um pequeno texto para tentar explicar um pouco dos meus sentimentos…
 
    Não quero que pareça que estou lutando sozinho, pois minha mãe é a grande protagonista da luta, eu sou apenas seu escudeiro na maior parte do tempo (isso quando eu não a atrapalho), na outra parte eu continuo não sendo protagonista. Na outra parte, ela luta sozinha, sem minha ajuda, ou com ajuda de outras pessoas. Também não quero que pense que sou herói, pois não faço nada comparado ao que meu pai fez por mim e pelo Mundo, e faço menos ainda comparado ao que ele ou minha família fariam por mim. (Por favor, caso decidam encaminhar a mensagem, não removam essa parte inicial, por justiça)
 
    Desculpem eventuais erros, mas estou enviando essa mensagem de madrugada, após outra noite de pouco sono perdida entre buscas desesperadas…
 
O menino que lutava contra o mar
(Paulo Gentil)
 
    Minha família é originária do Rio de Janeiro, não da Cidade Maravilhosa dos cartões postais, mas da outra parte, daquela que aparece nos noticiários e nos campeões de bilheteria do cinema nacional. Nos finais de semana, a diversão de nossa família, como grande parte de nossos vizinhos, era ir à praia. Assim, reuníamos comida, bóias (na verdade câmaras de pneus velhos), toalhas ásperas com cheiro de naftalina, bonés, protetor solar e íamos festejar o sol dominical, levados pelo meu pai.

A praia era quase perfeita, mas havia uma coisa que me incomodava: as ondas! A movimentação das águas, causada pelas marés, era altamente inconveniente. Ela tornava o mar arriscado, nos dando “caldos” quando estávamos na água, nos dando rasteiras quando estávamos andando na areia e nos arrastando para o fundo quando tentávamos nadar. Outro fato grave: a subida da maré destruía nossos castelos de areia, erguidos à custa de muitas horas de árduo esforço e exposição ao sol.

    Na tentativa de conter o inconveniente, eu me erguia de frente para o mar e resolvia enfrentá-lo. E eu tinha certeza que havia grandes chances de eu ganhar. Eu golpeava cada onda que se erguia, na tentativa de repelir as investidas de Poseidon. A cada momento eu estudava uma estratégia nova: bater de mão aberta, bater com as duas mãos abertas, pular com os braços abertos na direção da onda… Na minha limitada compreensão infantil, eu jurava que minhas forças poderiam conter o avanço do mar. Imagino que, por dentro, meu pai ria, compadecido, das minhas tentativas inocentes e provavelmente pensava algo como: “pobre criança, nunca vai conseguir conter o avanço do mar, pois ele é causado por forças maiores, como a força gravitacional da Lua e do Sol. Além disso, mal sabe meu filho que o movimento do mar leva à perda do seu castelo, mas é associado há coisas muito maiores que sua perda, com consequências sobre a fertilidade do solo, disponibilidade de alimentos, alterações climáticas …”. 

    Agora, algumas décadas depois, meu pai, o mesmo que nos levava para praia aos domingos, foi acometido por neoplasias malignas, o temido câncer. Agora me vejo lutando novamente contra o mar! Em vez de dar golpes na água, eu passo noites em claro, durmo no chão do hospital, busco auxílio religioso e espiritual, corro atrás dos médicos para entender as intervenções, uso meus conhecimentos para acelerar o processo de reabilitação, estudo para entender o quadro clínico, sugiro intervenções, provoco reflexões, supervisiono o trabalho dos profissionais envolvidos, cobro atitudes, etc. Mas, da mesma forma que na minha infância, vejo com desespero minhas tentativas se mostrarem infrutíferas, vejo o mar avançar inabalável, rindo dos meus esforços. Só que agora o desespero é muito maior! Agora eu não vou tomar um caldo, não vou levar uma queda e nem perder meu castelo de areia. Agora eu posso perder o homem que mais amo nesse mundo. Mas, apesar da perda infinitamente maior, minha possibilidade de ação contra o destino parece tão limitada quanto meus socos contra as ondas. 

    Alguém que olhasse de um plano superior, com uma capacidade de compreensão maior que a minha poderia pensar “lá vai o pobre menino lutar novamente contra o insuperável. Mal sabe ele que, assim como o movimento das ondas, o ciclo de vida e morte é inevitável. Mal sabe ele, pobre menino, que há um objetivo maior em tudo isso, o qual ele não é capaz de compreender”. Na verdade, acho que alguém já pensou isso, mas não quis me dizer para não tirar a esperança que me mantém lúcido, assim como, quando eu era criança, ele não quis acabar com meu sonho inocente de conter o mar. Nas nossas noites em claro no hospital, às vezes meu pai olhava para mim e eu não entendia bem o que aquele olhar queria dizer. Sei que não era medo. Sei que não era desespero. Sei que não era súplica. Era um olhar sereno com uma pitada de algo que, talvez, fosse um pouco de pena. Pena do pequeno menino, pena de sua inocência, de sua insolência, pois meu pai sabia que seu filho estaria lá parado do alto da sua insignificância a golpear algo infinitamente mais forte que ele.
Mas o que eu posso fazer? Aceitar, de braços cruzados, a perda do alguém que amo? Não! É isso que eu sei fazer desde pequeno, meu pai me ensinou a lutar, então é assim que vou agir! Só o cansaço da luta consegue me fazer dormir um pouco em meio à tristeza e ao desespero. Pai, me perdoa, por tentar conter o fluxo da vida. Sei que existem planos muito maiores para você. Sei que esse mundo se tornou pequeno para uma pessoa com a sua capacidade de amar e transmitir alegria, para uma pessoa incapaz de ter sentimentos ruins. Perdoe meu egoísmo, mas vou lutar contra o mar, pois não quero te perder. Na minha limitada compreensão eu só consigo pensar na minha perda, na perda da nossa família, na perda do Mundo, que não terá seu sorriso inabalável nem seu amor incondicional…

   Perdoa-me, pai, mas eu vou continuar lutando… até que um dia eu tenha condições de entender o ciclo da vida, como hoje eu entendo as marés…”
(Texto de Paulo Gentil) 

Orações faço e peço a vocês!
Alexandre Menezes

 
 
 
Paulo Gentil
Enviado por Alexandre Menezes em 18/12/2010
Reeditado em 25/07/2012
Código do texto: T2679592
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