ANOS SOMBRIOS
Num tempo página infeliz da nossa história, passagem desbotada na memória.Das nossas novas gerações Dormia a nossa pátria mãe tão distraída sem perceber que era subtraída Em tenebrosas transações (VAI PASSAR- CHICO BUARQUE DA HOLANDA)
Tempos difíceis para o povo brasileiro foi aquele vivido durante a ditadura militar. Curiosamente, naquela época, a maioria das pessoas não tinha consciência daquele momento político. Os meios de comunicação vendiam a imagem de um país em pleno regime de direito civil e político. O partido da situação (ARENA) e da “oposição consentida”(MDB), quando falavam do governo, referiam-se como sendo o governo da Revolução e não, ao do golpe militar. Vivíamos no país da mentira. Todavia, a verdade teimava em mostrar a sua cara. De vez em quando, o véu que cobria a realidade, abria-se para deixar claro, todo o sofrimento imposto pela supressão da liberdade.
Dentre tantos, recordo-me de um fato ocorrido naquele período. Ano de 1966, estudava eu, na segunda série ginasial em um colégio de Uberaba-MG. Lembro-me como se fosse hoje: aula de moral e cívica, nosso professor, um tenente coronel da polícia militar reformado. A propósito, os colégios da época costumavam contratar docentes ligados às forças armadas para demonstrarem apoio ao regime militar. Ele, já idoso e cansado, às sextas feiras passava a palavra aos alunos para que falassem de suas experiências cotidianas. Os adolescentes, por sua vez, contavam estórias de futebol, relatavam também filmes e outros fatos triviais. Numa dessas ocasiões, “Osvaldinho” menino inteligente e comunicativo pediu para contar um caso triste ligado a sua família. Silêncio foi total para ouvir um depoimento emocionado, vivenciado por uma criança de apenas 13 anos. Agora, passados mais de quatro décadas, arrisco-me a publicar os fatos narrados pelo meu colega de turma, naquele dia:
O pai desse jovem era um farmacêutico muito conhecido em seu bairro. Na verdade, fazia às vezes de médico, pois a maioria daquela gente, não tinha dinheiro para pagar uma consulta médica. Chamava-se Valdo, pessoa idônea, alegre e carismática, que ajudava a todos que o procuravam. Felizmente, na paróquia, o vigário também era uma pessoa muito atuante. Os mais carentes quando precisava de remédios, mediante a uma autorização do pároco, bastava passar na farmácia e levar o referido medicamento de graça. Valdo fazia preço de custo para os indigentes. No final do mês, o padre acertava as contas dos doentes.
Todavia, houve uma denúncia anônima contra o pobre farmacêutico no DOPS (polícia política). Tal delação afirmava que os remédios ofertados de graça para população eram por motivação política. Conforme o delator, seria uma forma encontrada pelos comunistas de aliciar moradores do lugar, para posteriormente realizar um movimento contra o atual regime, sendo o dono da farmácia, um comunista atuante. Então, passado alguns dias da denúncia. Por volta de duas horas da madrugada, bateram com insistência na porta do farmacêutico. Depois de alguns momentos, a porta foi aberta sem maiores cuidados, Valdo pensou tratar-se de alguém precisando de seus serviços. No entanto, dois homens em trajes civis invadiram sua casa. Lá dentro, ainda de pijamas, na frente de sua mulher e filhos, o pobre homem foi agredido fisicamente, algemado e levado de “camburão” para delegacia. Depois de três dias de muita luta dos familiares e amigos, ele foi liberado, finalmente! Para tanto, o testemunho do vigário foi fundamental para esclarecer o absurdo daquela denúncia anônima.
O que ocorreu durante esses três dias de clausura incomunicável no DOPS, não se sabe ao certo, o fato que aquele homem calmo e alegre deixou de existir. A mudança de comportamento foi notada por todos. O medo e a vergonha passaram a fazer parte de seu cotidiano. Passou a falar pouco, sempre de cabeça baixa e tristonho. Por outro lado, antes avesso a aparecer em público, depois do ocorrido, passou a desfilar fardado na parada de sete de setembro (era ex-combatente da força expedicionária brasileira). Também passou a ir à missa aos domingos, apesar de não ser religioso. Talvez para mostrar que não era simpatizante ao partido comunista, que defendia o ateísmo. Na verdade passou a viver uma vida diferente, marcada pelo temor e desconfiança. Tal situação contribuiu provavelmente para abreviar seu tempo aqui na terra, pois morreu de câncer, depois de alguns anos...!