convite para despertar
Eu te guardei no bolso esquerdo da calça, junto com todos os meus pedacinhos. Carreguei a calça comigo por dois anos que mais me pareceram séculos. Um dia adormeci e, por pura distração, deixei a calça no baú ao lado. Quando o sol me ardeu os olhos, despertei. Olhei para o lado, não havia calça alguma. Corri para a cozinha, onde minha mãe preparava o café e, desesperada, como quem tivesse perdido tudo, gritei:
- Mãe, onde está aquela calça que eu gosto? Eu a deixei ao lado da cama antes de dormir, não está mais lá.
Minha mãe se aproximou, me beijou a testa, sorriu e então disse:
- Minha filha, calma, era só uma calça. Você anda há tanto tempo com ela por perto e imaginei que estivesse suja. A coloquei para lavar.
- Mas você olhou os bolsos antes de lavá-la?
- Sim.
- Então onde está tudo o que estava nos bolsos?
- Está na primeira gaveta da sua cômoda, querida.
Corri de volta para o quarto, abri a gaveta e, por cima dos livros, nada além de duas moedas e um papel já desgastado. Nada que me fizesse falta, caso lavado. Segurei aquilo com as mãos, me sentei na cama e respirei fundo. Por dentro, meu coração mais era um campo de batalha de sentimentos e minha cabeça pensava tanto e não pensava nada. Estava louca, mas não doía. Estava desesperada, mas com os pedaços perfeitamente colados. Incrível como você foi se desmanchando aos poucos junto com a sujeira que estava impregnada na calça. E mais incrível ainda, como você foi se desmanchando dentro de mim. Relaxei as mãos, deixei as moedas e o papel cairem e, enquanto faziam um pequeno ruído ao tocarem o chão, me joguei na cama. O sol me ardeu os olhos outra vez. E brilhou com uma luz que nunca brilhara antes. Não era incômodo, mas um convite em forma de luz. Um convite para algo que eu estava me desligando aos poucos. De repente me veio uma vontade de sorrir, de sentir, de amar, de viver... Me dei conta de que às vezes mantemos coisas que não nos são necessárias e que nos faz sentir quebrados em um milhão de pedacinhos presos dentro de um bolso. Acho que todos deveriam lavar as calças às vezes sem se preocupar muito com o que há dentro dos bolsos. Vai ver é só mais uma moeda ou um papel que um dia foi útil e hoje, apenas insignificante. Vai ver era mesmo só uma calça que estava suja e precisava ser lavada... De fato, fazia algum tempo que eu acordava me sentindo espatifada, quebrada em um milhão de pedaços, perto de não ser capaz de sentir mais nada. Mas naquele dia eu acordei completa e incrivelmente feliz.