O Hóspede
Ele chegou lá em casa um pouco antes do almoço. Naquele tempo não era comum chegar desconhecidos à nossa porta e, por isso, chamou minha atenção.
Conversou com meu pai uma conversa tão boa que acabou sendo convidado para o almoço. Na verdade a própria conversa, nas entrelinhas, era um pedido de comida... Mesa desfeita mas o Sol ainda à pico... não dava pra sair assim, tão apressadamente. "Vou esperar o sol baixar mais um pouco..." justificou. Nesse dia minha mãe nos preparou um lanche especial, à tarde...
E a conversa foi se esticando e ficando mais interesante. Começou falar das inúmeras habilidades, das especialidades... dos cursos... Em dado momento diante da inércia de todos nós puxou da velha maleta de papelão um jornal carioca onde havia uma relação de aprovados no vestibular da PUC de uns dois ou três anos antes. Havia nela um nome sublinhado com tinta vermelha que disse ser o dele... foi o ápice. Numa família humilde como a nossa aquilo causava muita adminiração. E assim a conversa continuou até o jantar... E como já era noite mesmo, esticou também a "tipóia" e encurtou a conversa. E dormiu. Dormiu como se estivesse na sua própria casa.
Ao amanhecer higienizou-se, tomou café... e ficou pro almoço. E como nesses casos o tempo passa rápido, logo jantou novamente. Foi aí que meu pai percebeu ter perdido o momento de dispensá-lo; descobriu também que já não sabia o que fazer.
Nos dias seguintes ficou resolvendo um emprego de programador de compudador no governo do então Território Federal. Sabia Cobol, Fortran e outras linguagens de programação além de conhecer os computadores do CEPRORD... Menos mal pra nós. Pois assim logo nos livraríamos dele.
Ledo Engano: uma semana depois, o ilustre hópede já estava reclamando do excesso de sal da comida; do bife que não estava no ponto, do barulho na hora de dormir... O passo seguinte foi exigir arroz diferente só pra ele, que depois do almoço saíssemos para não atrapalhar sua sesta e que a roupa fosse engomada e não apenas passada.
O emprego não tinha dado certo e o "coitado" não tinha recursos para retornar para os quintos de onde viera. Mas isso não era problema (pra ele) pois com o ofício que tinha, logo estaria empregado. Vez por outra trazia algum amigo para o almoço sem sequer avisar minha mãe.
Percebi a gravidade da situação no dia em que jogou no lixo os restos de sua velha maleta, misturando seus trapos e cacarecos aos nossos. Nas verdade me apavorei com a idéia de tê-lo para sempre na família
Lembro do dia que estava no banheiro e ele aos berros chutou a porta. "É arame farpado, é?" perguntou em altos gritos. Fui obrigado a interromper a sessão para liberar-lhe o ambiente.
Foi então que a insustentabilidade da situação rompeu a áurea de bondade do meu pai: "Tenho uma coisa boa para o senhor", disse. Se aproximou meio desconfiado e quando viu nas mãos de meu pai uma passagem de ônibus (não lembro o destino, mas era só de ida) deu um pinote sem tamanho. Mas como ele iria assim, se nem uma mala decente tinha pra guardar e transportar suas "coisas"... Meu pai se "comoveu" e presenteou-lhe com uma... Mas como poderia viajar assim sem um centavo no bolso? Meu pai emprestou-lhe também um pouco de dinheiro, fazendo-o prometer que jamais viria devolvê-lo...
Todavia a paz só voltou a reinar quando, sob nossos intensos gestos de adeus, o bendito ônibus sumiu no horizonte levando nosso inesquecível hóspede...
By Chagoso (Junho 2010)