Barbas de molho
Intriga-me ultimamente um fato na Soterópoles. Um fato social: a presença constante de numerosos mendigos a povoar nossa cidade tornou-se uma rotina. Aonde quer que vá, a pessoa será sempre assediada por um deles. Seja nas vias públicas ou mesmo num restaurante. Isto não importa. Lá estão eles. E com que arte imploram! Usando o nome do Onipotente no afã de comover o caridoso cidadão.
Comovidos pela encenação a La Pietá, cavalheiros e damas põem à prova seus enraizados princípios cristãos, estendendo-lhes as mãos com alguns trocados.
Estes caridosos cristãos estão fazendo, talvez nem saibam mal a si próprios. Estão estimulando uma atividade, cada vez mais rentável aqui na Boa Terra. O negócio vai de vento em popa e as autoridades competentes que se cuidem. Ponham as barbas de molho. A mendicância está se profissionalizando. Para tanto só lhe falta o reconhecimento pelo Ministério do Trabalho.
Mendigos estão inundando a cidade. E que mendigos! Senhoras vigorosas tomam posição estratégica ao longo das calçadas. De preferência em locais de grande afluência de passantes. No regaço uma criança de meses no mais completo abandono, exposta a toda sorte de intempéries e sujeita a contrair doenças infecto-contagiosas.
Tais senhoras, artisticamente estendem a destra aos transeuntes. Estes embevecidos pela encenação as abastecem com alguns trocados. Isto tem muito de teatral... E com que espontaneidade! Mas não estou falando de teatro. A parte artística deixo a quem interessar possa. Estou falando de mendicância. E como disse antes, esse negócio vai bem.
Só vai mal mesmo é para as autoridades constituídas, alheias ao rombo provocado por estes parasitas sociais que, com essa atividade simbiôntica, deixam ainda mais combalida nossa economia popular.
A pobreza é admissível. Porém, uma coisa não se admite: a esperteza. Esta acaba, mais cedo ou mais tarde, levando o praticante à degradação moral.
A pedinte está na calçada, no colo o mirrado e maltrapilho bebê. Passa uma senhora generosa, apieda-se e quer a tutela. Ela nega. Como poderia dar? Sem o “instrumento”, como continuará o trabalho inescrupuloso? Ela tem na criança a certeza do pão de cada dia. Dar? Jamais. Quem irá compadecer-se da pobre senhora sem a criança? Quem? Ninguém. E ela sabe disso.
Outro dia um senhor me disse:
- A mendicância, nesta cidade, está se tornado um negócio. Um negócio como outro qualquer. Você entende onde eu quero chegar?
– Claro - respondi à indagação.
- Eu, por mim, já estou decidido. Doravante só darei esmolas a quem me apresentar a carteira de “pidão”. Caso contrário, não – exasperou -se o cidadão.
Eu também estou decidido. Concordo em gênero, número e grau com aquele senhor. Alguns pedintes são realmente necessitados, reconheço, mas, por um todos pagam.
Noutro dia estive a pensar no negócio e parti para o bico do lápis. Mergulhei na Matemática, operei uns cálculos e conclui: se um mendigo (?), estrategicamente posicionado abordar diariamente 500 transeuntes e, 50 destes derem, em média, R$ 0,50 (cinqüenta centavos), o (a) pilantra embolsará R$ 25,00 (vinte e cinco reais) ao final do dia.
Supondo esta média diária, ele (a) faturaria R$ 750,00 (setecentos e cinqüenta reais) por mês, quantia esta correspondente a quase dois salários mínimos atuais. Ocorre, entretanto, que existem salafrários – é o que digo. Salafrários de uma figa - que empregam toda a família nesse ramo de atividade.
E o pobre assalariado honesto, o que vive exclusivamente do salário-mínimo... Ó!
Partindo de tais considerações, caros leitores, tirem suas próprias conclusões. Suponhamos ter o ordinário uma prole de cinco membros, todos operando, bem... Façam os cálculos porque, a esta altura, já estou perdido nos labirintos da ciência do grande Pitágoras. Como disse, o negócio vai bem mal. Fica o alerta!
** Esta crônica foi publicada no Boletim Informativo do CRESS/PM, Ano I, n° 03, de Setembro/1977 e atualizada para a moeda atual.em 2008.