Dez vergonhas não alheias
Peguei uma carona pela metade na tarde de hoje. Pode parecer meio improvável uma carona pela metade, mas acontece. Alguém te encontra a pé em algum lugar e te leva até o teu destino, ou alguém te leva até metade do teu destino, e da metade tu dás o teu jeito de seguir em frente. A carona pela metade que peguei hoje foi do segundo tipo.
Caronas pela metade sempre me fazem lembrar de minhas vergonhas pessoais mais secretas, porque precisar do carro alheio me lembra que ainda não possuo o meu, e isso eu queria muito, e se investisse nas coisas certas, possivelmente já o possuiria, ou pelo menos estaria a caminho disso, esta é a primeira vergonha que me vem a mente, e desencadeia as outras.
A vida é cheia desses desejos não realizados, sentimentos não confessados, pensamentos sórdidos não verbalizados. Um exemplo disso é um feio costume que adquiri durante meu período de trabalho na urgência obstétrica de um hospital. Nunca inclui isto em nenhuma conversa, nem nas das mais francas com meus amigos, mas eu não consigo ver uma mulher grávida sem imaginar o momento em que ela conseguiu isso para si. Mulheres grávidas irremediavelmente me lembram sexo, mesmo que eu não veja absolutamente nada de sedutor em uma mulher grávida(pelo contrário, é perturbador, principalmente se a mulher for bonita), eu simplesmente não consigo ver aquela barriga enorme sem imaginar como, em qual situação, com quem ela fez, e no caso das feias e mulheres de rua, quem foi o corajoso. Esta é a vergonha de número dois
Outra coisa que me envergonha bastante, eu diria que é a número três, é outra mania feia que tenho de me irritar com pessoas sem conhecê-las. Outra coisa que parece difícil de conceber, mas que acontece com freqüência em meu universo particular. Funciona mais ou menos assim: rapazes de boa aparência, arrumados e com chave de carro na mão me irritam, porque eu os deduzo "mauricinhos" pagodeiros, que tratam as mulheres como pedaços de carne, e os desejo mortos. Garotas fúteis com seus celulares no meio do shopping me irritam, pois as deduzo esnobes e ignorantes, e as desejo mortas. Mulheres muito enfeitadas, com roupas finas e perfumes franceses me irritam, pois as imagino peruas "donas do mundo", e as desejo mortas. Homens sujos de massa de cimento na frente da construção, fumando, deitados em papelões, na sombra de uma árvore me irritam, pois eu os sei canalhas e baixos, mexendo sempre com qualquer mulher que passe(e esta é uma regra sagrada e inviolável, operário mexe até com caolha, se usar óculos escuros) e os desejo mortos. No caso da terceira vergonha, não sei se é por me irritar tanto sem motivo com pessoas que não tem nada a ver comigo ou minha vida, ou por desejar as pessoas mortas o tempo todo.
A vergonha número quatro é mais comum, porque o monstro verde da inveja morde todo mundo em algum momento da vida...ele me morde principalmente quando vejo em alguém algo que eu gostaria de ter. Não falo de bens materiais, porque isso já é comum demais. Falo de detalhes mais singelos, como talento para compor belas canções, ou dreads no cabelo que não posso fazer por conta do trabalho. Falo de alargadores maiores que os meus, de trejeitos mais charmosos, de corpos mais bonitos, e de papos mais "cabeça". É vergonhoso sentir inveja do iPod novo do alheio, mas invejar o quanto alguém estudou mais do que eu, ou leu mais livros de filosofia, isto sim, é vergonhoso pra valer.
Vergonha número cinco: meu TOC de conferir mentalmente tudo que faço. Se estou colocando colheradas de açúcar em meu adorado café preto, ou se estou me passando perfume, confiro as colheradas, confiro as espirradas, mesmo que tanto faça quantas eu despendi, pois sejam lá quanto forem, continuarei fazendo enquanto achar necessário. O caso é que este hábito(que sinceramente não sei de onde tirei) faz-me sentir um tanto mesquinha. Me lembra alguma necessidade que não possuo de render minhas coisas, algum tipo de "mão-de-vaquisse" que não gosto de concluir que me pertence, nem que seja inconscientemente.
A sexta, e talvez pior delas, é desejar secretamente pessoas que sempre afirmo fugirem do meu padrão de estética e mentalidade. Sinto atração por pessoas mais novas quando afirmo preferir as mais velhas. Sempre digo que prefiro pessoas com personalidade e coragem, quando intimamente, adoro manipular um relacionamento. Me chamam a atenção roupas curtas e decotadas, quando constantemente afirmo considerá-las vulgares. As calçadas de colégios particulares da elite são então meus paraísos oculares, já que daquelas pessoas, nenhuma jamais daria atenção a uma nerd "branquela" carente de um "corpinho" padrão. As pessoas nesse ponto agem como os cachorros, que farejam amavelmente os traseiros de seus pretendentes para conferir se possuem boa alimentação, e se seriam progenitores ideais para seus futuros filhotes. No caso humano, no entanto, o que define isso é geralmente a conta bancária e a boa aparência...quanto mais gorda for a conta e mais escultural for o corpo, mais cheiroso será o seu "bumbum".
Sétima vergonha(e esta também merece destaque) é meu irritante hábito de me apaixonar perdidamente, criar mundos fantásticos e contos de fadas(ou contos de anjos, de faunos, de elfos, de seja lá o que for) em torno de qualquer "olá" mais gentil, de qualquer olhar mais demorado, de qualquer gesto de simpatia, se ele vier de alguém que me atrai. É só alguém interessante me dar uma piscadela de leve e pronto, imediatamente ela estará sobre um cavalo branco, enfeitada de rosas e mantas leves, cabelos ao vento e perfume cítrico. Tá, meu devaneio dura alguns segundos, meu sentimento de auto-piedade quando me percebo a mais fácil das criaturas viventes dura o resto do dia, e lá vai minha auto-estima correndo atrás do cavalo, das fadas, dos faunos.
Detesto também essa minha mania terrível de encarnar personagens cultos e sensuais quando bebo demais. Citando Hesse e Mïller, acabo irritando todos na mesa que não se interessam tanto assim por literatura gringa, e acordo morrendo de vergonha de mim mesma. Uma vergonha memorável, a oitava vergonha.
Gosto muito também de contar vantagem. Adoro sair por cima das discussões, mesmo quando eu estou completamente errada. Prefiro afirmar que me confundi apenas no momento do erro, do que admitir que na verdade nunca soube qual era o certo. Tenho um orgulho danado de conhecimento, e me irrito quando alguém sabe mais do que eu. Pronto, falei. A nona vergonha.
A décima é meio que uma conclusão de todo esse meu discurso. O costume que todos tem de maquiar defeitos óbvios. Todo mundo está vendo que tu és a pessoa mais orgulhosa do mundo, e tu te afirmas humilde aos quatro ventos. Todo mundo sabe que tu gostas da boa e velha sacanagem, mas tu te pintas de careta e conservador. Eu sou hipócrita, Ok. Todos somos, mas...eu sou a personificação da hipocrisia, pois afirmo o tempo todo que a detesto, a repudio, e no final, acabo o sendo, como todo mundo é. Eu assumi aqui vergonhas que camuflo em meu dia-a-dia. Todos temos as nossas, como dizem por aí, todos tem os seu demônios, sejam pequenas besteiras, sejam enormes distúrbios comportamentais. Acaba que essas vergonhas tanto fazem parte de nossos íntimos, tanto nos acostumamos com a presença delas, que por muitas vezes às ignoramos no intuito de esquece-las, mas elas sempre vem a tona nos piores momentos, e nos constrangem novamente. Faço comigo mesma um trato então, a partir de hoje assumirei minhas inúmeras vergonhas, mesmo que intimamente, mesmo que seja apenas para não guardá-las só pra mim, para que elas não se acumulem, para me sentir menos anormal, vou assumi-las, lidar com elas com mais humor e menos culpa, porque o que difere as vergonhas secretas dos complexos interiores, é a forma que se lida com elas. Que venham as caronas pela metade...qualquer dia desses, vou ter o meu carro também.