BRINCANDO DE SUPER-PODERES
Há pessoas que não nascem para se encaixar nas relações sociais convencionais. Eu sou uma delas, desde a infância.
Quando era pequena e brincava de super-heróis com os meus irmãos, o meu super-poder preferido era o de voar. Era uma delícia! Abria os braços e corria ziguezagueando e, na minha imaginação de criança, voava de verdade. O meu irmão era o imortal: nada o atingia. Matava de ódio a minha irmã que, mesmo sendo uma titã e atirando-lhe pesadas colunas, nunca o derrotava. A resposta era sempre a mesma: - “Eu não morro, sou de aço!” - E eu, voando, ao passar de vez em quando por eles, pensava comigo: -Quando ela vai perceber que nessa brincadeira só ele ganha? - Todo dia é a mesma coisa. - Me consternava por ela Eu sim, me divertia. Levei décadas para entender que ela não se importava realmente com o seu posto de eterna derrotada, caso contrário, não aceitaria aquela situação. Os dois se divertiam, no final das contas. Também levei anos para entender que só os dois brincavam entre si. Eu não participava efetivamente da brincadeira. Para eles eu era a doidinha que fingia voar. O meu poder não cabia na estória.
E assim cresci, voando sozinha, aprendendo coisas de mim e do mundo.
Com o passar dos anos, substituí as asas imaginárias pela imaginação alada. Minha cabeça é um universo e só quem é como eu pode entender que sou feliz assim.
De todos os super-poderes com os quais já me imaginei, o único que ainda lamento de verdade não possuir é o de ler o pensamento alheio. Não para bisbilhotar, porque quem voa não se importa com essas coisas, mas para economizar tempo. Seria tão mais fácil se pudéssemos conversar com as pessoas, sabendo o que elas realmente pensam e querem de nós! E nessa grande brincadeira que é o mundo real, quantos amigos verdadeiros teríamos, eliminado mal-entendidos, e quantas mágoas desnecessárias de traições descobertas!
Que grande triagem nas relações amorosas! Quantos abandonos e desenganos seriam evitados! Quanto sexo de prazeres unilaterais interrompidos a tempo de não simular!
Quantos feedbacks autênticos teriam as relações profissionais! Quanta energia gasta nos engalfinhamentos e escaladas tortuosas pelos corredores seria melhor canalizada!
Quantas lições ridículas de moral perderiam plateias!
Quanto preconceito abolido, quanta santidade desmascarada!
Quanta guerra mais sincera!
Há certos poderes que talvez não trouxessem prazer a quem os tivesse. Acho que bem poucos teriam estrutura emocional para conviver com o corpo feio da verdade nua. Melhor continuar voando.
Tranqüilize-se, ainda não endoideci. Só estou brincando de super-poderes. De certa maneira, entendo que o mundo seria morno demais se ninguém pudesse enganar ninguém. Cadê a aventura, ao se levantar de manhã e tentar adivinhar quem, hoje, vai te mentir ou dizer a verdade?