REMINISCÊNCIAS

Logo após o ocorrido, ela foi deportada para fora da cidade e do país. De boca em boca, o boato correu célere dando conta de que teria ido morar no exterior com uma tia, irmã, sei lá eu. Tiraram-na dali como se faz com uma criminosa. Na calada da noite que, de tão falada, passou para a história da cidade e marcou a minha meninice.

Mandaram-na para muito longe da vergonha que havia causado à família. Parece que foi para os Estados Unidos. Longe demais...muito distante de todos os seus. Sem direito à volta nem para visitar os pais. Feito castigo. Um caso fatídico. Maldito destino feminino.

Os dois por trás dos muros. No escuro. Cabulando aula. Que desavergonhados. Alguém viu e incomodado com a desfaçatez, matando aula para fazer sem-vergonhice, invejosa, hipócrita, correu pra contar pra professora. Que logo, escandalizada, chamou a Diretora. Que preocupada com a repercussão do escândalo para o futuro da escola, prontamente chamou os pais. Que cheios de vergonha por se verem assim expostos perante a opinião de toda a cidade tomaram as providências que acharam cabíveis para o momento grave e vexatório.

Mandaram-na para longe, não sem antes aplicar os castigos que ela merecia por expor o bom nome da família ao ridículo da situação. E haja sermão do pai. Chororó da mãe, fungando e se assuando enquanto urgente arrumava a mala da ingrata. Ela tinha que sair da cidade ainda naquela noite. Nem que fosse preciso fretar um carro de praça para leva-la até a capital de onde partiria logo no dia seguinte para o estrangeiro. Assim na urgência mesmo. Sem direito a despedidas...nem da melhor amiga?. Isso mesmo. Até porque os pais da melhor amiga não iam deixar que elas se vissem. Aliás, nesse sentido já haviam tomado as devidas providências para evitar o contato e o possível contágio. Sim, assim mesmo como uma doença contagiosa. Pelo sim, pelo não já haviam mandado a menina passar o fim de semana na casa da tia que mora numa cidade vizinha, para não correr nenhum risco delas se comunicarem. Ainda bem, para eles, que estava muito distante a era do celular...telefonar? Só na central.

O certo é que antes de soar a primeira badalada do sino da Matriz anunciando a meia noite enfiaram a infeliz num carro de praça fretado exclusivamente para a ocasião, e despacharam-na ladeira abaixo. Num frio tirano. A névoa envolvendo a noite em um gélido abraço do seu diáfano manto branco, empanando a visão.

- Perigoso descer assim.

- Tem nada não. Ela não teve medo de fazer certas coisas, vai ter medo de nevoeiro? Pensasse antes de dar o mal passo!”

Mesmo depois de toda a “operação abafa” a moça continuou pra sempre mal falada em toda a cidade. Coitada, agora não era mais moça nem nada. Qual rapaz de família que sabendo do acontecido haveria de querer casar com ela hein? Melhor mesmo ir pra longe. Quem sabe não se endireita e arranja um trouxa por lá!

- E que fique por lá mesmo, comadre. Longe das nossas filhas moças.

- É mesmo Pra não dar o mau exemplo”.

Ainda bem que do outro lado da fronteira já eram outros os tempos!

Enquanto isso o rapaz desfilava todo o seu orgulho pelas ruas da cidade. E de namorada nova. Nele nada pegou. Não teve que deixar a casa dos pais e muito menos a cidade. Imagina se passou pela cabeça de alguém tomar qualquer atitude desse tipo com o único varão, orgulho e esperança da família?

Em homem não pega nada.

- Ela é que não prestava. Ainda bem que a mandaram para longe. Vai que por azar sai um filho dessa brincadeira.

- Cruzes! Coitado do nosso filhinho. Tão novo ainda. Com um futuro brilhante pela frente!

Nem a cidade cobrou qualquer atitude dele ou dos pais. Saiu ileso dessa, pra aprontar outras pela vida afora. E ainda se gabou, o desgraçado, de ter pegado uma moça donzela. Um grande feito perante os colegas. A fama maior de ter feito mal a uma moça. Virou herói. Se fosse hoje seria o pegador. O matador. O cara. E ele ainda era primo dela. Mas isso não contou para ele. Nem o fato de terem sido criados praticamente juntos. Ele não pensou que ela ia ficar mal falada, depois dessa malfadada noite.

E ela, apaixonada, não pensou no que iria acontecer depois.

E eu, ainda muito criança, por trás do reposteiro, calada, muda, revoltada, assistia a todo o reboliço da cidade e ouvia restos de conversas do “diz que disse” que saía e entrava na casa da minha tia, para onde acorriam as beatas da cidade, donzelas empedernidas, cheias de falsos pudores, que a todo o momento, entre um relato e outro, ante um detalhe mais picante, se benziam invocando o nome da virgem Maria, para elas modelo maior de virtude a ser seguido a qualquer custo.

Do rapaz, pouco se falava.

- Ele é homem e homem tudo pode. É assim mesmo. Sempre foi assim e assim sempre será.

- Ela é que devia ter se preservado. Mas não, parece que era mesmo uma oferecida. Vá ver ficava se botando pra ele.

Disfarçada por trás do reposteiro eu escutava tudo e gravava no meu coração de criança a ofensa como se comigo fosse. Eu me sentia solidária com aquela moça sem mesmol saber bem por que. E uma revolta muda, calada foi invadindo o meu peito e sem poder fazer nada naquele momento eu guardei em mim essa semente que um dia haveria de brotar em coragem contra toda descriminação que leva a atitudes abomináveis como essa. Foi essa revolta que me fez encetar a minha luta particular para nunca ter que me curvar ante nenhum tipo de preconceito.

E até hoje, sempre que sei de injustiças sendo praticadas contra alguém e que muitas vezes resultam em violências físicas simplesmente pelo fato desse alguém ser mulher, é naquele episódio que eu vou buscar a revolta que guardei no meu peito de criança, pequena demais para entender, porem capaz de sentir, se emocionar e se posicionar demonstrando uma consciência e lucidez estranhas e precoces demais para a sua idade e para o local em que nasceu e vivia.

Daquela moça nunca mais se soube nada. Hoje nem seu nome eu sei. Acho que sabia naquele tempo. Dessa história o que sei foi o que pude montar como num quebra cabeça com os fragmentos que chegavam aos meus ouvidos das conversas disfarçadas das minhas tias com suas amigas escandalizadas. Mas foi o bastante para eu saber que havia algo errado, fora de lugar. E não gostar.

Também o que esperar...ali ainda estavam longe de chegar os ecos de uma coisa que estava acontecendo no mundo civilizado e se chamava revolução sexual, desencadeada por mulheres lúcidas e corajosas, para que episódios como esse não fossem mais tão fáceis e corriqueiros de acontecer.

Mas é triste saber que mesmo depois de todos esses anos ainda seja necessário muitas vezes usar da força da lei para impedir que seja negada a condição de ser humano a tantas mulheres em todas as partes desse mundo. Que tantas outras sejam violentadas por sua condição de sexo. Que outras mais vivam presas aos grilhões invisíveis do medo e do terror. Que outras sejam vilipendiadas em seus lares por maridos, filhos, pais, amantes que as submetem aos seus desejos e caprichos.

A lei que anda de cadeira de rodas a mostrar a sua face antes oculta pelos véus da hipocrisia e da intolerância ainda não pode atingir a sua plenitude, mas caminha para que um dia seja facultado às mulheres o direito de escolher a quem querer e amar e quando rejeitar sem ter de pagar um preço tão alto pela ousadia.

Eu tenho fé que esse dia ainda há de chegar e que eu ainda estarei aqui para alcançar.

Tenho fé.

Não aquela que move montanhas. Mas aquela que nos faz acreditar que elas podem ser alcançadas e contornadas.

Alena Ajira
Enviado por Alena Ajira em 14/12/2010
Reeditado em 24/06/2015
Código do texto: T2672205
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