DOLCE FAR NIENTE
Ela estava voltando das férias. Completamente fora de forma para encarar o fardo do trabalho, teve dificuldades para assumir de imediato as múltiplas tarefas e se readaptar a cumprir horários rígidos de entrar e sair. Hora para merendar. Tempo limitado para falar ao telefone. Tempo para ir ao banheiro. Tempo para rir. Da até para chorar, se tiver tempo. Chegou se sentindo assim meio deslocada, como um peixe fora d'água, uma estranha no ninho. Precisou de um tempo para se readaptar à escravidão dos horários, pegar pressão, como se diz na gíria.
Passando por tudo isso mais uma vez, parecia que cada vez era pior. Ela então ficou pensando que não deveria ser assim. Algo deveria ser feito para amenizar essa situação. Com aquilo na cabeça, ela tentou trabalhar, se envolver nas coisas da empresa, voltar ao seu ritmo habitual de antes de sair de férias. Mas sentiu dificuldades e, num desses raros momentos de devaneio a que podia se dar ao luxo, que injusto! Pensou que seria bom e necessário que o setor de Recursos Humanos das empresas, os conhecidos e sempre temidos Rhs, implantassem um Serviço de Readaptação ao Trabalho – SRT para ajudar os funcionários da casa na sua dolorosa volta ao batente, como se costuma dizer por aqui, após trinta dias de gozo das tão merecidas e esperadas férias anuais, pois todos hão de convir que deixar o ócio de um período de nada fare niente, para suportar oito horas de correria, preocupação, aporrinhação de chefe não é fácil para ninguém.
Dentro desse espírito, esse serviço, na concepção dela, poderia começar implantando na empresa um período de abstinência moderada voltada para a desintoxicação do organismo do empregado, impregnado de ócio, que não é ópio, mas é como uma droga que vicia fácil.
Poderia começar, por exemplo, pela adoção de um processo de “volta lenta, gradual e restrita” ao trabalho durante um tempo igual ao período gozado, com uma jornada de horários alternativos. Inicialmente com poucas horas que iriam aumentando de forma lenta e progressiva até atingir a carga habitual, pois trinta dias de um dolce fare niente é tempo mais do que suficiente para transformar o operário padrão de antes num perfeito malandro de gafieira.
Seria igualmente interessante, pensou ela, que também fosse adotado, no período de abstinência do ócio, um método de terapia ocupacional que constasse de atividades de lazer intercaladas às horas de trabalho efetivo.
Dessa forma, no período de transição e readaptação só poderiam ser solicitadas ao empregado tarefas leves, sem grandes necessidades de desprendimento de energia e queima excessiva de neurônios. Seria assim como um período de aquecimento, como acontece nos times de futebol antes de entrar em campo. Aquecimento dos músculos e ativação do cérebro.
E um detalhe importante, essas tarefas seriam realizadas em doses homeopáticas nos chamados dias úteis(e por acaso existem dias inúteis?), enquanto as atividades de lazer deveriam ser aplicadas em doses massivas para evitar ou amenizar os efeitos colaterais como causar uma distensão músculo/cerebral, por exemplo, em conseqüência do trabalho árduo sobre o organismo relaxado e desacostumado do retornatário (uma junção de retorno com otário). Um parênteses amigos: esse termo – retornatário - segundo uma amiga minha, é um neologismo. E eu adoro neologismos!
No estágio probatório, o “retornatário” ficaria liberado daquelas enfadonhas, cansativas e babacas reuniões mensais, promovidas pelos RHs a título de nivelamento e integração dos trabalhadores da empresa. Nesse período seriam também permitidos e até concedidos incentivos monetários e flexibilidade de tempo para que o retornatário possa preencher esse tempo com atividades culturais e de lazer, mais interessantes e mais produtivas.
Durante um tempo maior do que seria considerado normal, ela ainda continuou sonhando com as férias que nem foram tão boas assim...mas não faz mal...férias são sempre férias...nem que seja pra ficar de “pernas pro ar que ninguém é de ferro” (*).
Sem grana e sem companhia, pois nessa maré braba até o namorado dera o fora, com coisas pra resolver em casa (onde é a provedora e gestora única) sem muitas opções, a nossa reformista teve que se contentar com o sofá da sala, um saco de pipocas e uma coca-cola para chorar os dramas alheios, vivenciar a história de amor do par romântico do filme que pegara na locadora mais próxima de casa; assistir à programação da TV, do humor escrachado ao dramalhão mais comovente. Aff! Ninguém merece! pensava ela em seu devaneio.
Ficar em casa de pernas pro ar sem fazer nada é no geral o sonho de todo trabalhador que passa o ano esperando por essas benditas férias enquanto da duro na empresa todos os demais 335 dias.
Mas quando chegam essas benditas férias geralmente não tem dinheiro pra realizar nem um décimo do que a mente projetou para esses ansiados 30 dias. Viajar. Passear. Visitar a família que mora distante. Amigos que nunca mais viu. Conhecer lugares exóticos e encantadores que viu na televisão. Mas na hora da verdade essa realidade fica cada vez mais distante! Mais um sonho impossível. Mas uma frustração a ser adicionada ao rol das muitas que vem acumulando pela vida afora. E quem vai pagar a conta do analista?
Mas, querendo ser prática, ela tenta dar a volta por cima e usar a sua capacidade polianesca (olha amiga, parece que temos aqui outro neologismo!) de ver o "lado bom" de tudo o que acontece.
- Pois deixe estar, quem precisa de viagem pra ser feliz!? Só os estressados e abduzidos pela ideologia vigente acha que férias tem que ser para viajar de qualquer jeito, em qualquer circunstância. Ninguém merece!
Estar de férias, por pior que seja, é sempre melhor do que ficar aturando todo dia chefe chato, saco! Colegas invejosas, fofoqueiras...Queira ou não queira, de um jeito ou de outro a gente acaba sendo alvo delas. Que horror! Como alvo ou como co-autora da fofoca. E no fim ela pipoca e você fica na mira da ira sozinha, e ainda por cima inocente, não mente!. Por isso mesmo voltar a trabalhar não a animou muito. Ainda preferia o sofá, as pipocas, a coca-cola (Ai Deus! Lá se vai o meu regime! Que remorso!) e as lágrimas de emoção pelo drama dos outros!
E tentando justificar para si mesmo quanto ao fato de não ter realizado nenhuma viagem nesses trinta dias, por mais curta que fosse pensava, ainda mantendo uma atitude polianesca, que tinha sido bom, pois assim não correra o risco de cair em algum daqueles casos que todo dia são relatados e que tomamos conhecimento através do noticiário.
Pessoas que embarcaram nas propagandas e promessas enganosas que oferecem pacotes de cruzeiros marítimos que nunca chegam ao destino e ficam encalhados em alto mar. Destinos sonhados e nunca alcançados. Acomodações precárias em pousadas e hotéis que prometem mundos e fundos em seus materiais de divulgação mas na hora agá nada é como dizem os belos folders de propaganda e divulgação. Excursões com programação de tempo sem base real para as mil e uma atividades oferecidas causando atropelos e queima de etapas com passagens tão rápidas pelos eventos e locais de visitação que não da nem para fixar o nome muito menos a história do local. Fica uma leve recordação e uma fotografia tremida, desfocada, sem nome e sem identidade. Fica na saudade!
Imagina, pensava ela querendo justificar, se eu vou correr o risco de ficar abandonada sem lenço sem documento e sem condições até de voltar pra casa em meio a uma excursão pela qual paguei uma nota para ter conforto e segurança! Nem pensar! Ai como é bom o meu sofá!
Enquanto pensava em tudo isso à luz do que estudara nos livros que o partido distribuía e das palestras que assistira na sede do sindicato e como boa estrategista que pensava ser, ia bolando mais uma forma de virar a mesa em cima dos patrões, enquanto pessoa e com a consciência corporativa que desenvolvera ao longo dos seus anos de militância no sindicato.
E lhe veio à mente que era urgente que fosse realizado um trabalho massivo para anular na cabeça do cidadão os efeitos da lavagem cerebral que foi feita ao longo de muitos anos de acomodação que implantou na cabeça do empregado a aceitação, como uma verdade universal e inquestionável, de que o trabalho produtivo deve ser a única fonte de prazer do homem no mundo capitalista em que vivemos e de que “o trabalho dignifica o homem”, seja ele qual for, aliado a um trabalho psicicológico de resgate do laissez faire "deixai fazer, deixai ir, deixar passar". "laissez faire, laissez aller, laissez passer".
Trabalho de superação do sentimento de culpa e do remorso do não fazer nada, do ficar atoa, “...num tal de fazer nada /
como a natureza mandou...”(**). Da leveza de praticar o ócio com liberdade e sem culpa. Por mais que você ache que ele não vá te levar a nada.
E ela então se perguntava: mas quem foi que disse que as coisas têm sempre que ter um resultado que pode ser medido e pesado? Que tudo tem que resultar em lucro. Que todas as coisas têm que se transformar em produtos e a vida é um mercado onde se pratica o comércio de nossos sonhos e de nossos desejos?
Mas também quem botou na nossa cabeça que só se deve tirar férias se for para viajar?
Dormir tarde. Acordar mais tarde ainda! Aqueleolc dolce far niente do ócio criativo de cada dia, sem culpa e sem pecado, sem obrigação de nada a não ser agradar a si mesmo, satisfazer os desejos mais inconfessos é uma das coisas que se pode “fazer” quando de férias. Coisas difíceis de fazer durante os outros dias. Nem o final de semana, permite esse privilégio aos pobres mortais trabalhadores desse país. No sábado, a partir do meio dia, quando o povão deixa o trabalho e encerra a jornada semanal de trabalho, é aquela correria. Até conseguir chegar em casa (la se vão, no mínimo, uma hora e meia do dia),
Após conseguir vencer a guerra de chegar, muita coisa a espera em casa. Cuidar da casa, fazer supermercado, consertar coisas quebradas em casa tipo trocar lâmpadas queimadas, consertar o ferro de passar roupa com a resistência queimada, lavar e depois passar a roupa da casa; fazer consertos nas roupas; cuidar um pouco das plantas, dar banho e tosar o cachorro, levar os sapatos velhos parra o conserto a fim de ver se dando um trato ele ainda aguenta um tempo, pois está caro comprar um novo com esse mísero salário que se ganha. Isso e muito mais coisas que ela não lembrou agora.
Ah e o domingo mulher, ta esquecendo pra que foi feito? Para o lazer e o descanso do trabalhador não é? O famoso sétimo dia em que Deus descansou após ter criado cada um de nós à sua imagem e semelhança e tudo o mais que nos rodeia, não é isso que diz a Bíblia?
Pois é, acontece que por mais que se estique o sábado nunca é suficiente para fazer tudo o que precisa ser feito...e o jeito então é deixar uma boa parte das coisas para o outro dia. E o outro dia é exatamente o domingo do descanso. E la se foi o descanso pras cucuias.
O tanque lhe espera Alice! Mãos à obra mulher que outra semana de dureza a espera ali bem na esquina. Prepara-te para mais uma rotina de aborrecimentos até o próximo fim de semana de labuta pesada. Vida de operária!
Então o jeito mesmo é deixar o descanso e lazer para as férias. Que venham as tão faladas férias tão esperadas e sempre retardadas.
Mas entretida em elucubrar teorias revolucionárias e traçar planos e metodologia de ação que viessem melhorar a qualidade de vida do trabalhador e que começava assim com uma forma menos traumática e dolorosa de retomada do trabalho na volta das férias, ela nem se deu conta que há um tempo, desde mesmo que voltara das benditas férias, ela virara alvo de uma observação disfarçada mas continua e cuidadosa do chefe de seção.
Mas ela achava que havia pensado em tudo e que o plano era perfeito e completo, pois pensara até na inclusão de um serviço de apoio psicológico ao retornatário, além de assistência social e jurídica. Pensou inclusive em que seria imprescindível que fosse criado um fundo de assistência ao retardatário com a finalidade de prover as condições pecuniárias para que ele possa aproveitar os horários livres do período provatório em atividades de lazer e cultura como ir ao cinema, museus, clubes, teatro, shows, praia, etc.
Mas, como todo plano perfeito o dela também tinha o seu calcanhar de Aquiles. E, infelizmente ela não contou no seu time com a ingênua clarividência de um Garrincha como teve o Feola na seleção brasileira. Assim ela traçou uma estratégia perfeita, mas esqueceu de combinar com os jogadores adversários. E acabou tomando de goleada.
E o chefe de seção, capitão do time adversário, não estava nada satisfeito com o seu desempenho e andava buscando um motivo para despedí-la por justa causa, pois para ele empregado que pensa por si só, que tem idéias próprias é sempre um potencial problema e perigo. O melhor, nesses casos, pensava ele do alto da sua sapiência e de anos de experiência naquela função de que tanto se orgulhava, era cortar o mal pela raiz.
Ainda por cima, ela ainda sob os efeitos colaterais do ócio resolveu dar uma de espertinha e achar por bem aproveitar aquelas chatas e enfadonhas reuniões promovidas pelo RH para fazer marketing do seu plano de forma a disseminar suas idéias revolucionárias e mirabolantes e assim ganhar novos adeptos.
E cometeu um erro fatal invadindo o espaço sagrado do chefe de seção que já estava até a borda com ela. E como no conceito dos patrões um bom chefe administrativo financeiro é aquele que sabe se fazer odiar pelos empregados ele era tido como o melhor, por aí se pode ter uma idéia do tamanho da encrenca em que ela se meteu!
Aquele palanque era o espaço dele e ele não abria mão disso. O seu palco de toda segunda-feira era sagrado Na sua ingenuidade ela nem se deu conta de que estava pisando num terreno minado que já fora demarcado antes. Bem se vê que ela nunca leu “A arte da Guerra” de SUN TZU e nem desconfia quem seja Maquiavel.
Mas tão enleada ela estava com as suas idéias revolucionárias que não percebeu o quão perto de novas férias ela estava. E do tipo de férias que nenhum empregado gosta de gozar e que pode ter trinta ou muito mais dias, dependendo da qualificação do empregado, da situação do mercado de trabalho e, principalmente, da sorte de cada um.
Ser mandada de volta ao sofá da sala, ás pipocas e à companhia das mentirosas, enfadonhas e repetitivas novelas da televisão brasileira, no início e por algum tempo lhe pareceu um prêmio. Mas após algum tempo ela vivenciou a experiência inversa – querer pedir férias do ócio e começou a gritar para o mundo ouvir:
Por favor, me ouçam! Eu quero meu trabalho de volta. Mesmo sem férias, décimo terceiro. Sem conceitos marxista, maoista, machista, feminista,,,sem nenhum ista.
Fora todos os “istas”. À vista ou a prazo, eu acato tudo. Mudo de lado. Me abalo até qualquer lugar, enfrento qualquer barra para trabalhar.
Ônibus lotado, apertado. Gente abusada. Cheiro de suor. Calor intenso (mas vou alegre, serelepe). Chefe chato (mas ele é até bonzinho!!!). Colegas falsas e fuxiqueiras, barraqueiras (eta tranqueira!). Comer de marmita barata (pensando bem, isso até me incita ou seria excita?). Trabalho repetitivo (um aperitivo). Assédio moral de superiores (serve pra quebrar o tédio, a monotonia do dia).
Então de repente, sem que ela soubesse explicar como nem porque o saco cresceu em suas mãos e pipocas gigantes começaram a saltar sobre ela e sufocar a sua garganta. O sofá da sala onde estivera jogada displicentemente assistindo um filmezinho medíocre e enfadonho transformou-se num instante em uma imensa cratera que se abriu e a estava engolindo. A coca-cola de dois litros, por si só já tão gigantesca, transformou-se em uma descomunal e escura cachoeira prestes a afogá-la num mar de espumas caso ela conseguisse se safar do ataque das pipocas gigantes.
Aquele lugar estranho e sufocante em que de repente se transformara a sua sala de estar onde passava a maior parte do seu tão esperado tempo de ócio parecia estar se rebelando e começava a lhe aprisionar.
Sentindo que aquele ambiente, que antes lhe fora tão familiar passara a lhe ser hostil e agressivo ela começou a se debater para se libertar dos tentáculos com que uma criatura alienígena saída diretamente do filme de ficção científica que ela assistia na televisão lhe puxava para o seu mundo virtual e tenebroso, Mas os seus esforços eram baldados porque ela estava paralisada pelo terror e medo.
Resolveu então pedir ajuda e tentava em vão gritar, mas a voz não lhe saia da garganta sufocada pelas pipocas gigantes que tomavam o seu fôlego impedindo-a de respirar.
Num esforço supremo saiu um socorroooooooooooooooo, me tirem daqui eu quero o meu trabalho de volta. Foi quando aquele odiado e bem familiar trinado estridente a despertou parecendo dizer ei moça, hora de trabalhar, levanta desse sofá sua preguiçosa senão você vai se atrasar.
Ela então, começando a compreender tudo que havia acontecido, tomou-se de de amor por aquele de quem ela costumava falar mal e que no auge da raiva e da revolta muitas vezes chegara a jogar, solenemente, conta a parede do quarto para lhe fazer calar, ao ponto de se pegar cobrindo aquele despertador velho e ultrapassado com sonoros beijos.
Tudo não passara de um terrível pesadelo, pensou alto e enchendo-se de alegria, meteu os pés da cama e correu para o banheiro apressar a sua toalete matinal.
E enquanto corria apressada para a parada do ônibus mais uma vez atrasada para o trabalho ainda terminando de comer um pão com manteiga que esquentara rapidinho na chapa ao mesmo tempo que tentava arrumar o cabelo, ia lembrando de uma canção do saudoso Gonzaguinha:
“...porque sem o seu trabalho o homem não tem honra
Mas sem a sua honra
Se morre se mata
Não da pra ser feliz
Não dá pra ser feliz
Não da pra ser feliz”(***)
Sem teoria
Sem protesto
Sem pesadelos.
Na real.
Eta menina, desse jeito você não se cria!
Avia, corre pra pegar o trem...que já vem...que já vem....que já vem.(****)
Até as próximas férias....
(*) Extraído do Poema "Filosofia" do pernambucano Ascenso Ferreira
(**) Extraído da letra da música "Bom tempo" de autoria do compositor Chico Buarque de Holanda.
(***) Música de Gonzaguinha: Guerreiro Menino
(****) Música de Chico Buarque: Pedro Pedreiro