MIL NOVECENTOS E SESSENTA E UM
Era um dia comum, certamente, para a maioria das pessoas. Mas, como nenhum dia é absolutamente comum para todas as pessoas, para Eunice Esteves de Oliveira, 27 de março foi um dia incomum.
1961 prometia ser alvissareiro e bastante conturbado politicamente. O mundo respirava Guerra Fria. Respirava, não. Comia, bebia e excretava Guerra Fria.
Em janeiro tomavam posse como presidentes de suas repúblicas, John Kennedy, nos Estados Unidos e Jânio Quadros no Brasil. Kennedy havia servido durante a Segunda Guerra e, assim como Hitler, fora ferido em combate. Interessante, que outro ferimento iria dar cabo de sua promissora carreira vinte anos mais tarde.
Jânio Quadros do Brasil não teria o mesmo sortilégio. As "forças estranhas" o teriam levado a desfechar um tiro no peito da nação. Sete meses depois abandona o poder inaugurando um longo período de trevas no Brasil.
Sangue inocente derramado na África, América e Ásia no fogo cruzado inescrupuloso dos EUA e da URSS. Angola, República do Congo, Cuba, Vietnan...
A União Soviética detona "Ivan", o maior artefato bélico então fabricado, mas felizmente (ou teria sido infelizmente) foi só pra impressionar seu rival americano. Alguns meses depois daria início a Crise dos Mísseis Cubanos nos 10 dias que abalaram o mundo.
Ergue-se o Muro de Berlim; inaugura-se o Edifício Avenida Central no Rio de Janeiro, o primeiro em estrutura metálica.
A Guerra Fria ganha o espaço sideral. Os céus não são mais apenas dos condores. Yuri Gagarin realiza o sonho de Ícaro.
Neste mesmo ano nasciam Barack Obama, a fugaz estrela Susan Boyle, Eddie Murphy, Diana, a princesa do Terceiro Mundo, e outros não menos célebres desconhecidos. O Santos de Pelé sagrara-se campeão da Taça Brasil de Futebol e do Campeonato Paulista, enquanto o Botafogo de Garrincha comemorava o título carioca neste mesmo ano de 1961. O volante potiguar Edmilson Silva Araújo, o Piromba, nosso homônimo, brilhava no Fluminense carioca ao lado de Telê, Píndaro e Castilho. A TV Tupi leva ao ar o "Vigilante Rodoviário" e Silvio Santos estréia na TV Paulista aos domingos. Domingos legais aqueles. Roberto Carlos, príncipe da bossa nova, lança seu primeiro disco. A Bossa, que já não era tão nova, dava seus últimos acordes dissonantes e a Jovem Guarda entrava em gestação, assim como o golpe militar que a embalaria nos acordes vibrantes do iê-iê-iê. Goulart, que visitava a China em tempos de Guerra Fria, assumiria a presidência em meio a crise legada pela renúncia de Jânio. Novos quadros na política brasileira. Jango vira capa de "O Cruzeiro" e o cruzeiro se consome na inflação de Jango. Mas, voltemos ao 27 de março de 1961 e a Eunice, pessoa comum, alheia à Guerra Fria. Seu mundo era outro, sua realidade era outra. Talvez nunca em sua existência houvera tomado conhecimento do conflito global. Era assim com a maioria das pessoas comuns. Neste dia, Eunice estava na maternidade para dar à luz ao seu quinto e derradeiro filho. A grande revolução da pílula contraceptiva ainda não havia acontecido antes de sua quarta gravidez. E que revolução! A mulher urbana agora se assenhorava de seu próprio corpo e se aventurava no mercado de trabalho. Que transformações aquele comprimidinho iria causar nas sociedades brasileira e mundial. Eunice houvera engravidado deste quinto rebento por opção, promessa aos céus no intento de ser agraciada com a fidelidade do marido. Naqueles tempos era a única alternativa que restava às mulheres. Como em geral os céus nunca ouvem os oprimidos, em geral também as mulheres continuavam subjugadas à opressão masculina, ora do pai, ora do marido. Outras tantas eram sobrepujadas pelas próprias mães que as compeliam ao casamento precoce. Vida comum para a maioria das pessoas, lembra-se?