O Natal e o Beija-Flor
O Natal e o Beija-Flor
Apesar do horário, poucas crianças corriam na praça. O beija-flor veio ter comigo, agindo como se fossemos velhos conhecidos que se encontram na linha do tempo e retomam uma conversa que nunca teve início. Dizia-se desolado, que seu grande amor, sua companheira, passara a falar outra língua e parecia não haver força no universo capaz de uni-los novamente.
A árvore mais frondosa do parque, uma árvore centenária cujo tronco ninguém ainda se atrevera a rabiscar um coração, nos sombreava com a gentileza de um regato. É possível ser gentil de várias formas. Findei por dizer ao beija-flor que as vezes projetamos nas pessoas qualidades inexistentes.
- É natal – disse ele – estarei longe da pessoa que mais amo nesse mundo. E você, com quem vai passar?
De propósito, fugi da pergunta com uma informação pueril, dizendo-lhe que nesse semestre, em Maceió, assassinaram 32 moradores de rua.
- Que papelão – comentou ele - tão doído, tão cheio de lembranças que não pode iluminar nada nem ninguém. Jamais entendi a existência humana, que só deseja estar sob uma lâmpada fraca, lendo um livro de cabeceira, com receio do amanhã, a menos que o amanhã dê garantias de ser igual ontem e trasanteontem.
Ele parou, parecendo surpreso com o próprio palavreado, subiu até o topo da árvore e desceu com a agilidade de um músico virtuoso, que singra na nota mais alta e resvala na mais baixa, produzindo leveza e graça em frações de segundo.
- Não sei o que deu em mim – prosseguiu – quando fico longe dela falo sem parar. Sabe, sempre tive a ilusão de que iríamos envelhecer juntos, que nossas penas ficariam brancas e voaríamos de asas dadas no compasso de um crepúsculo colorido, desses que a gente vê no verão, quando o sol se põe.
Balancei lentamente a cabeça. O conteúdo de seu discurso sugeria exprimir mais esperança do que aparentava.
Retomei o tema da existência e, de modo aleatório, desfiei que nossas percepções divisavam mais vitórias do que derrotas, aliás inexistiam derrotas, aliás nossas vitórias eram brevemente iluminadas por nossas lâmpadas de pouco alcance, mas fomos grandes e tivemos grandes sonhos, fomos felizes por um momento, até dois momentos, embora nossas provisões, nosso pavio e nossa cera, nossas besteiras de domingo cevaram por fim, cada passo palmilhado.
Ele ouviu, com sua incrível capacidade de estar em vários lugares quase simultaneamente e o fremir de suas asas, seu pulso de vida acima de tudo, indicavam que nessa altura ele ouviria qualquer língua para tê-la de volta. Mesmo sabendo que sofreria.
- Então não vale a pena – disse-lhe eu – pois na sua condição só pode haver uma linguagem.
- Eu sei – respondeu ele – mas me deixe falar à toa. Chego ao entardecer muito diferente do raiar, pois raiei sem melodia. Hoje de manhã, era um transeunte. No princípio da tarde, um rosto na janela e um sentir profundo de águas que beija-flor algum jamais ousaria.
Apesar da ventania repentina, os galhos fortes da grande árvore não davam margem para qualquer abalo no frescor de nosso diálogo.
- Dentro em breve será natal – comentou ele com voz sumida – iríamos ver luzinhas, então haveria a troca de módicos presentes e...
- Por que módicos? – interrompi-lhe, sem no entanto parecer indelicado.
- Beija-flores não tem posses – explicou – quer dizer, trata-se de um paradoxo, pois possuímos tudo e nada ao mesmo tempo, percebe?
- Como a palavra... - exprimi, pensando alto – veja, sou a última pessoa no mundo a dar conselhos amorosos para quem quer que seja. Mas vou te dizer uma coisa sobre a modéstia que aprendi recentemente, posso?
Ele assentiu, e no instante seguinte eu declamei:
“A MODÉSTIA* É UMA MOLÉSTIA,
DIMINUI O IRRETOCÁVEL.
QUEM É DE DEUS É SEMPRE MUITO,
NADA NELE É ABDICÁVEL.
NÃO HÁ MENOR NO ABSOLUTO,
NEM PIOR, NEM DESCARTÁVEL.
O INCRIADO É AMOR EM TUDO,
NÃO EXISTE O MENSURÁVEL”.
*(Modéstia, de Hugo Moura Leal)