As duas faces da moeda

Tudo depende do ponto de vista. Para Narciso o que não é espelho é feio. Para Fernando Pessoa quem inventou o espelho envenenou a alma humana. A vaidade, como tudo na vida, tem seus prós e contra. Basta olhá-la com cuidado para perceber que na medida certa não é nenhum pecado tão mortal assim.

Concordo que tudo o que almejamos na vida consciente ou inconscientemente é a busca da admiração. Se compramos um carro ou mesmo roupas novas, nada disso tem sentido se ninguém aparece tecendo elogios do tipo “Puxa, como você está bonita, mais magra, mais jovem; esta roupa lhe cai muito bem!”. Coisas que uma simples produçãozinha é capaz de fazer. Aqueles olhinhos brilhantes ao verem você passar ou estacionar sua máquina possante recém-lançada no mercado automobilístico.

De que vale demonstrarmos inteligência, bom-humor, sabedoria, se os guardamos para nós mesmos? Muitos atores utilizam o clichê: “a fama incomoda”, acusam-na de invasão de privacidade. Então por que escolheram uma profissão que os deixa tão expostos? Pura jogada de marketing. Triste deles se não tivessem o reconhecimento de seu público. Como seria andar pela rua passando despercebido sem dar um autografozinho sequer?

Por falar em exposição, é exatamente isso que faz o escritor: expõe seus sentimentos e idéias para que as pessoas leiam e interajam com o conteúdo, pois a arte é ativa, apreciá-la somente seria uma atitude passiva. Um escritor sem leitores não serviria para nada. Um advogado, um médico com seus nomes sujos na praça não arranjariam clientes. Eles precisam de prestígio. Quem arriscaria sua vida contratando profissional mal-visto? O músico fala através de sua música. Esta por sua vez é a arte e portanto a conversa é necessária: o emissor transmitindo a mensagem ao receptor. Afinal de contas conversar sozinho está longe de ser um ato salutar ou divertido.

Desde criança estamos nessa busca que só cessará no dia de nossa morte. Quem nunca desejou ser o aluno mais inteligente, com as maiores notas, o mais popular? E os idosos? Tudo o que querem é atenção, serem lembrados pelo que fizeram, foram e ainda podem ser e fazer. Querem ser admirados.

Quando a vaidade não excede o umbiguismo, extrapolando o campo da admiração natural, beira ao lamentável. Passa-se por cima de quem for para atingir um objetivo nem sempre necessário. Por esse tipo de vaidade Eva mordeu a fruta proibida. Creonte, rei de Tebas, condenou à morte Antígona, noiva de seu filho, por contrariar sua ordem e sepultar dignamente Polinices, o irmão dela. Essa mesma vaidade fez Sansão desvendar à Dalila o segredo de sua força. Foi por vaidade que na virada do século XX o jazz foi tachado pelos brancos ianques de sub-música, algo horrendo, por ser música negra. Deus livre a juventude branca de se engraçar dessa “porcaria”, juntar-se aos negros e chegar a se miscigenar. Acabaria com a identidade do país. Música só a erudita européia!

É pela vaidade não-sadia que as pessoas são incapazes de estender a mão a um irmão e esquecem de que amanhã talvez elas estejam no chão. O mundo e as voltas que ele dá... Eva foi expulsa do paraíso. Creonte tirou a vida de Antígona. Deus tirou-lhe a sua duas vezes deixando-o ainda vivo: seu filho ao ver a noiva morta suicida-se com uma espada; a rainha golpeou-se no fígado ao saber da morte do filho e já deplorável, tornou a faze-lo para ter certeza de que não sobreviveria. Afinal, era mais mãe que esposa e já havia perdido outro filho. Sansão foi traído, tivera seus cabelos cortados e, enfraquecido, foi derrotado.

O Mr. Henry Ford, um dos brancos que se achava superior aos negros, usou sua influência para propagação do jazz. Após uma banda de garotos brancos serem chamados de criadores deste, os Estados Unidos começaram a se render ao ritmo que posteriormente seria um dos mais aclamados do mundo virando símbolo do país. Ele daria início a outro ritmo alucinante, o rock’n’roll, que depois também viria a ser considerado obra de branco. Se não fosse Jimmy Hendrix... Bem, pelo menos no setor automobilístico Mr. Ford teve algum sucesso.

Não precisamos fingir ser uma outra pessoa só para impressionar, pois quando a máscara cair não teremos onde nos esconder. Eva poderia ter recusado a oferta da serpente juntamente com a promessa de poder igual ao de seu criador. Ela poderia impressionar com autenticidade, sendo admirada pela função de primeira mulher da criação divina, por ter um homem que realmente a amava (Adão comeu a maçã por amor, não por engano), por vir a ser uma mãe zelosa etc.

Todos temos um pouco da ambição e desobediência de Eva, da inflexibilidade de Creonte, da força de Sansão, do preconceito de Mr. Ford e do egoísmo humano ao negar socorro. Resta-nos olhar no espelho e discernir o que há de bom e o que deve ser melhorado em prol de nós mesmos e do próximo, pois a vaidade exacerbada nada mais é que a busca de aparências para suportar mais facilmente o que está por trás delas. E se esta não fosse a solução para a fuga de nós mesmos, a história da humanidade seria outra.

Karoline Veiga França
Enviado por Karoline Veiga França em 12/12/2010
Reeditado em 12/12/2010
Código do texto: T2667658