Crônicas do Hipercentro: A Sorte Grande
Crônicas do Hipercentro: A Sorte Grande
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Cordélia ficou muito triste quando Matusalém escolheu Ignez Maria para esposa.
Triste?
Não!
Furiosa.
Saiu de casa batendo a porta e dizendo que naquele mesmo dia ia arrumar um que ficasse no lugar dele.
Era moça determinada.
Partiu para o tumultuado centro da cidade.
Aquilo que, politicamente correto, agora se chamava “hipercentro”.
Quanta bobagem!
O centro (ou hipercentro) estava lo-ta-do!
Véspera de Natal.
A cidade parecia um fervedouro.
Uma calamidade para uma pessoa à beira de um ataque de nervos.
Ia mostrar para aquela lambisgóia com quantos litros se faz um quadril tão redondo.
Como era o seu.
Primeira providência: dar um jeito nas unhas.
Com os dedos literalmente devorados pela ansiedade e raiva não conseguiria nada.
Nada que Nilcéia, a manicure, não resolvesse.
Moça linda.
Um pouco baixinha, mas quando abre o sorriso, não tem pra mais ninguém.
Arrumou namorado.
Que não bebe.
Ela, doida por uma cerveja.
Isso não vai dar certo, Nilcéia.
Deixa pra lá!
Tem coisas melhores que cerveja...
Pensando nas “coisas melhores que cerveja”, Cordélia subiu a rua.
Rua da Bahia.
Lamentou a confusão de gente.
Na sua frente, um senhor com muletas.
Com dificuldade, ia pelejando para manter o equilíbrio na calçada de pedras portuguesas.
Só podiam ser portuguesas mesmo estas pedras...
Há muito, Cordélia observava que várias mulheres cegas ficavam em frente aos bancos, vendendo mega sena acumulada.
Nunca tiveram uma única gripe na vida.
Gritavam o dia inteiro: “”MEEEGAAAAA SEEEEEENAAAAA ACUMULAAAAADAAAAAA!”
Para o infortúnio dos transeuntes.
Ô pulmões abençoados!
Cordélia arrumou o raio da sandália que teimava a lhe sair dos pés e encarou as pedras portuguesas.
A sua frente, o homem custava a se equilibrar nas muletas.
Cada passo, um infortúnio.
Merda de pedras.
A cidade foi feita para quem anda, enxerga e corre.
Quando menos esperava, foi “ultrapassada” por uma senhora de sandálias havaianas.
Quase correndo, ela passou entre o homem de muletas e a cega, que, por um momento, estava calada.
No exato momento que a afobada passou pela vendedora de mega sena, ela gritou, a todos pulmões: MEEEEGAAAAAAA.
Não precisou completar o SEEEENAAAAAAA, para a mulher dar um pulo de susto e mandar a bolsa em cima da cabeça da cega.
Ao se dar conta do ocorrido, a mulher de havaianas tentou consolar a vendedora de meeeegaaaaa seeeenaaaaa, colocando as mãos no ombro da pobre coitada, que já tremia por inteiro.
Foi a vez de a cega gritar.
Sem saber o que estava acontecendo, ao levar uma bolsada no rosto, ela berrava pedindo por socorro.
Muito perto dali, o senhor de muletas, com toda a confusão, perdeu de vez o equilíbrio, se esborrachando no chão.
Ao presenciar a cena, Cordélia deu uma alta gargalhada.
Teve que sair correndo dali para não apanhar.
Ao atravessar a rua, enxugando dos olhos as lágrimas resultado de tanto riso, trombou num homem, fazendo sua mala cair e espalhar papel por toda rua.
Mas o homem não ficou bravo.
Abriu-lhe um belo sorriso, esticou a mão e se apresentou.
Abraão, às suas ordens!
Já que não podia ter Matusalém, Abraão seria muito bem vindo!
(Obrigada, Paulo, pela sugestão do nome para esta crônica.
Obrigada, Stan, por me apresentar personagens tão simpáticos como Cordélia e Matusalém.
E sugiro que leiam mais sobre os dois e Ignez Maria no endereço abaixo)
http://www.recantodasletras.com.br/cronicas/2634369