Página em branco VII (reflexão sobre a infância, sobre o holocausto)

VII

E após alguns dias de pausa em que o facto de ter umas páginas em branco pendente na minha secretária virtual não era mal que me apoquentasse por ai além, eis que numa viagem de autocarro me ocorreu uma ideia antiga a que tinha de dar um corpo moderno dos dias de actualidade. É engraçado como andar de autocarro me inspira…Não que escreva sobre o que ouça, pois regra geral ando a ouvir as músicas do meu MP3, limitando-me a estar atento ao que se passa na rua ou aos rostos das pessoas que me rodeiam, sem som, pois faço questão da banda sonora da vida ser por mim escolhida. De carro tenho que me concentrar na condução, tendo ideias, pois sempre as tenho em todo e qualquer lugar, mas tendo que as esconder em mim para lhe dar vazão quando as puder fixar em papel, quer físico, quer virtual, ao passo que no autocarro, e liberto das contingências automobilísticas sou livre para criar, para imaginar.

Veio-me à memória muita coisa, mas sobretudo uma antiga foto que vi numa revista sobre a libertação do campo de extermínio nazi denominado Auschwitz em Janeiro de 1945. Uma velha foto onde se mostram alguns dos sobreviventes das sevícias nazis, e neste caso particular eram crianças, algumas dezenas delas, e entre elas uma que me marcou, uma parecida com um dos seres que mais estimo na vida.

Desde pequeno que lido com a temática nazi, que devoro livros sobre os terríveis anos do nazismo, tentando perceber o porquê de um povo culto e civilizado como é o alemão ter permitido que a pior politica da história humana tomasse conta dos seus destinos entre 1933 a 1945 levando a Alemanha para o abismo de Maio de 1945. Li milhares de páginas e ainda hoje não percebo…Fico atónito ao saber que os guardas e chefes dos campos eram pais e maridos exemplares, carinhosos, afectuosos, mas autênticas bestas humanas ao lidar com os cativos dos campos de extermínio. Uma coisa era eles serem desprezíveis a todos os níveis, mas não, eram cidadãos vulgares que se bestializavam no seu trabalho…Ainda hoje não percebo…Esta dicotomia existencial, que fazia com que a mesma mão que dava um afago à sua filha antes dela adormecer, e desejar para que tivesse sonhos lindos e sem monstros, era a mesma mão de monstro que apertava o gatilho de uma pistola apontada à cabeça de uma criança com a mesma idade da sua filha. Não percebo…Esta insana dicotomia maniqueísta que transforma espécie de anjos em bestas mal entrassem no perímetro do campo, ou vissem na rua os seres que o seu grande líder intitulou de menores, de descartáveis, não percebo…

E esta realidade sempre me chocou, e mais ainda quando fiquei mais sensível a quando do nascimento das minhas sobrinhas. Todo o amor do mundo que tinha doseado a quem me rodeia veio ao de cima e eu tornei-me mais, ainda mais sensível ao sorriso de uma criança, a um gesto que vindo de outra que não a do nosso circulo intimo julgamos ser algo sem grande significado, quando nos pertence essa criança julgamos ter todo a sorte do mundo em poder ver esse pequeno paço existencial na vida desse ser, e damos graças aos céus por termos a honra de presenciar o crescimento de uma criança, sem dúvida das coisas mais divinas a que uma pessoa pode aspirar. E eu fico positivamente babado quando as minhas sobrinhas me tratam por tio, fazem uma malandrice e olhem para mim com um ar inocente, à espera de uma censura, mas o máximo que sou capaz é de fazer um ar sério, e muito depressa me escapulir para bem longe para desatar às gargalhadas, pois aquela malandrice foi simplesmente maravilhosa de assistir por ser pura e inocente, por não ter maldade, por ter vindo das minhas lindas sobrinhas.

Já antes respeitava crianças, chegando a ter alguns empregos em que tomei conta delas, sendo um bom profissional por saber lidar com elas, por lhes dar espaço para elas crescerem, por lhes deixar que elas fossem elas, com limites claro, mas por lhes dar as asas que uma criança precisa para voar.

Mas quando começaram a nascer as minhas sobrinhas eu fiquei ainda mais permeável a essa realidade da infância, e por isso o acto ignominioso dos nazis em matarem, inclusivamente crianças me chocou, me choca, e eu não percebo, e por muitas páginas e fotos que veja jamais hei-de perceber o que leva ao assassínio, especialmente o assassínio de uma criança.

Por isso aquela foto das crianças sobreviventes foi a que me tocou mais de perto das centenas que eu vi, porque uma criança da idade da minha sobrinha mais velha e muito, muito parecida com a minha sobrinha estava ali, à beira do inferno, sobrevivente do inferno, e foi por isso que hoje esta página não podia ficar em branco, em nome da vida, em nome da humanidade.