Feliz, Passando Raiva
Nota: se você tiver paciência de ler este relato, tenha também a bondade de me poupar de comentários acalentadores embasados em análises filosóficas freudianas. Divirta-se!
Quinta-feira à noite. Entrei na academia e saí de lá duas horas depois numa mistura de satisfação, felicidade e de um posteriormente compensador cansaço físico. Havia conseguido me desligar dos meus pensamentos enfadonhos e concentrei-me somente no então presente e no que o circundava. Esse foi um dos motivos da estranha felicidade que me acometia. Logo fiquei preocupado porque alguma coisa iria acontecer. Dizem que isso é pessimismo. Eu digo que é calejamento pois no dia anterior, tive o mesmo vislumbre de felicidade e ao chegar em casa me deparei com a mais pura e tenra irritação, tanto que fui obrigado a encher o rabo de remédio pra dormir e assim o fiz antes da meia-noite, o que é uma coisa raríssima. Meu barraco está em reforma. Minha mãe é assinante de uma dessas revistas de decoração e ficar vendo aquelas fotos e lendo aquelas matérias não deve fazer bem pra ela que, durante todo o período de um ano, acumula um montante pra fazer uma “reforma”. Coloquei as aspas por que a “reforma” que ela faz todo maldito ano consiste em destruir o que ela fez no ano anterior. Desta vez, a cozinha, que no ano passado era lavanderia, vai virar sala. A lavanderia, que foi construída no ano passado, vai virar a cozinha. A sala, por sua vez, vai virar o que eu poderei, finalmente, chamar de MEU quarto. Ainda tentei convence-la de economizar o dinheiro por que depois de duas décadas ouvindo que eu teria um quarto só meu, acabei desistindo de tal habitat já que estou bem crescidinho e o meu atual sonho é morar sozinho com as baratas do Centro. De qualquer forma, cheguei em casa e os dois sofás estavam em pé no meu atual quarto - o qual divido com meus dois irmãos -, obstruindo toda e qualquer passagem de ar e/ou luz pro interior do mesmo. Estava abafado e o teclado do computador estava coberto de pó. Comecei a espirrar e os espirros me deram fome. Perguntei o que tinha pra comer. Tinha esfiha do Habibs. Tal iguaria tem algumas utilidades na nossa vida: dar sede, petrificar a merda no nosso intestino, inspirar flatos de odor insuportável até para um gambá e dar azia. Não tinha janta. Não tinha refrigerante pra ajudar a descer aquela farofa de esfiha. Não tinha por que haviam tomado tudo. Dois litros para três pessoas. Comecei a me irritar. Fui pro computador. Sentei na cadeira. Era a pior de todas as cadeiras da casa. A mais velha e remendada das cadeiras velhas e remendadas. As outras, estavam espalhadas pela casa. Por que tinham que mexer justamente na minha? Troquei a cadeira podre pela minha, que estava servindo de pia para uma bacia cheia de copos sujos. Em cada um dos copos, havia um leve vestígio de refrigerante. Tentei pensar em coisas positivas. Não consegui e decidi ir tomar banho. Minha prima estava lavando o banheiro. A fome apertou e fui até as esfihas e as coloquei num prato e joguei dentro do microondas. Talvez a radioatividade me ajudasse a morrer um pouquinho. Achei um Tang. Fiz o Tang e fui pro computador resolver uma parada. Fiquei cinco minutos resolvendo a parada. Voltei pra cozinha e já tinham tomado todo o Tang de 1 litro que eu havia acabado de fazer. Todas as pessoas que ali se encontravam ficaram me olhando com cara de paisagem. Abri a geladeira, destampei uma long neck e voltei pra mesa empoeirada do computador. A cerveja não estava propriamente gelada, mas dava pro gasto. No meu e-mail, duzentas mensagens novas; correntes de vídeos eróticos, oferecimento de suplementos alimentares e o habitual oferecimento de vagas de trabalho que não me apetecem, tais como; motoboy, cozinheiro, estagiário de Direito e etc. Eu adoraria ter uma moto, pois não passaria mais raiva com ônibus. Eu adoraria saber cozinhar, pois não passaria raiva mastigando uma esfiha requentada cheia de farinha. E eu adoraria mais ainda poder estagiar em Direito, pois isso seria um sinal de que eu tenho condições de pagar uma faculdade de tal curso e ainda a paciência de cursa-lo. (E se você quiser comentar “vai aprender a cozinhar” eu antecipo a réplica: vá tomar no seu rabo. Obrigado). Continuando. Para que a cerveja não ficasse intragável após ficar quente, eu dava uns bons goles. Claro que a parada subiu rápido pra cabeça e eu comecei a ficar pirado e de mau humor. Escrevi os textos “Absurdismos” e “Da Academia Para o Puteiro”, já ficando meio sóbrio após o derrame de palavras, tomei banho e fui dormir. Tentar dormir. Já eram duas e meia da manhã e eu rolando de um lado pro outro da cama impaciente, cheio da insônia. Tive um sonho real demais pro meu gosto: estava na minha mesa trabalhando (e quando acho que dormindo vou ter paz na vida, me engano mais uma vez) e chegou a morena do outro setor e sentou ao meu lado. Eu tinha escrito um soneto pra ela de nome “Morena do Elevador” e tomei coragem e entreguei a folha. Ela leu com uma expressão de desinteresse. Quando terminou, fez uma bola de papel com as minhas sofridas palavras e foi até o lixo, jogou lá, voltou e falou: - “Tudo o que você é escreve é péssimo. Não tem profundidade, nexo, coerência... É tudo repetitivo e pobre. Por que insiste nisso?”. E saiu andando e ainda falou: -“é difícil, viu?” no que eu repliquei “é”, mas respondi pensando que pra ela que falava de BBB seria realmente difícil ler o que escrevo – notem eu tentando salvar meu rabo no sonho. Fiquei magoado com a ofensa dela. Poxa, eu tinha gostado tanto do soneto! Precisava ser tão esnobe assim? Então, acordei e vi que era só um sonho. Mas ainda continuava magoado. Ficar escrevendo sobre essas porras que aparecem do nada e não tem sensibilidade alguma para captar as mensagens que inspiram é idiotice pura mas como ir contra a inspiração, se ela me faz tão bem? Mas que belo egoísta que sou! E escrever sobre escrever é outra idiotice, portanto, paremos por aqui. Acordei pela manhã com o pedreiro berrando no portão. Peguei o celular. 07:57h. Faltavam três minutos pra ele despertar. Coloquei pra despertar 08:10h. Acordei 08:05h com o pedreiro arrancando os rodapés do outro lado da parede do meu quarto. Pra arrancar um rodapé, não sei se vocês sabem, não dá certo você ficar de cócoras e falar: - “ô nenezinho lindo, sai daí da parede vai!” Não. Ele enfia a talhadeira na parada e desce a marreta. Sexta-feira e eu acordando na base da marretada. Na quarta acordei com o barulho do azulejo sendo serrado. Na terça, com azulejo sendo retirado das paredes da cozinha-que-vai-virar-sala. Levantei da cama, fustigado pela vontade de deitar novamente e sair dali oito ou nove anos. Saí do quarto e pisei num pedaço de azulejo pontiagudo. Voltei pro quarto e coloquei um chinelo. Fui até a cozinha que era a lavanderia. Todos acordados. Tinha mortadela. Que me dá azia, também. Lembrei que na quarta tinha colocado um danone natural na geladeira. No dia anterior, à noite, eu tinha estranhado que ele ainda estivesse inteiro lá. Fui até lá. Abri a geladeira e peguei o danone. Vazio. Retiraram a “tampa” da embalagem até a metade, beberam tudo, fecharam a tampa novamente e recolocaram no mesmo lugar. Encrespei. Feio. Nessas situações eu acabo me surpreendendo com a minha capacidade de transformar a irascibilidade em fluência verbal e soltar as palavras de uma forma afetadora que acaba até magoando os interlocutores, não pela utilização de palavras ofensivas, mas pelo emprego correto e mordaz de palavras suaves. O que deve ser irritante pra quem me ouve. Não restando então, o que comer e nem paciência pra mais nada, liguei o computador, sempre na esperança de receber o e-mail que vai me dar o emprego que almejo. O pedreiro continua retirando os rodapés. Coloco a senha no computador e não vai. Noto que aquelas bolinhas pretas que mascaram as palavras estão a mais. Ué, mas digitei corretamente... Tento de novo. Bato na primeira tecla e aparece uma bolinha. Ok. Bato na segunda tecla e aparecem TRÊS bolinhas. Dou backspace pra apagar. Mas o backspace não funciona. Reiniciei. Tentei de novo. Uma senha de quatro dígitos virou uma senha de oito dígitos. Sempre na segunda letra, apareciam três bolinhas. Cliquei entre a primeira e a segunda bolinha e apertei o delete. Ah, deu certo! Coloquei a terceira letra e foi normal. Na quarta, apareceram três bolinhas. Repeti o processo, clicando entre a terceira e a quarta bolinha e apertando o delete. Agora sim, a senha estava completa. Dei enter. Não funcionou. Tentei de novo. Não deu certo. Coloquei o cabo do teclado em outra entrada USB. Não deu. Reiniciei o computador. Nada. Decidi ir tomar banho. O banho foi normal, por incrível que pareça. Estava esperando escorregar e ganhar uma fratura exposta na perna ou quebrar o pescoço. Mas saí ileso. O pedreiro na porta do meu quarto retirando os azulejos. Tinha finalizado os rodapés. Na porta do meu quarto ABERTA retirando os azulejos. Toda a poeira possível indo parar na roupa que eu deixei separada pra ir trabalhar. O filho de uma puta bem que poderia ter fechado a porta. Entrei no quarto espirrando e pensando em suicídio. Decidi deixar a mochila em casa. O que significaria não levar água e nem livros e ficar com a calça sobrecarregada com o peso de celular, crachá, carteira, bloco de notas, caneta e etc. Coloquei todos os apetrechos nos bolsos e me senti tão inflado como um dândi napoleônico. Olhei pra mochila. Saí de casa. Mas tinha esquecido o crachá. Voltei pra pegar. Saí de novo. Mas o portão estava fechado. E eu tinha esquecido a chave. Entrei pra pegar e lembrei que havia outra long neck na geladeira... Saí dali correndo antes que fizesse merda. Fiz o caminho de sempre e sempre e sempre e sempre até o ponto de ônibus. E, como todo bom dia de corno que se preze, era o dia de eu vê-lo descendo a avenida em direção ao ponto, vazio, quando estou numa distância que, mesmo correndo, não dá tempo de embarcar, só dá tempo de aprecia-lo fechando a porta dianteira assim que a última pessoa sobe e ele arranca, me deixando lá, inerte, olhando, amaldiçoando toda a porra da sorte escassa que eu tenho nesta vida bela e maldita. Mas tudo bem. Entrei numa lotação que me deixaria no metrô – o que não significa, necessariamente, pegar o metrô. Recuso-me a gastar um centavo a mais que seja pra entrar naquela lata de sardinha lotada pra tentar diminuir um possível atraso. Sentei no penúltimo banco. Liguei as musiquinhas. Recostei no vidro e fiquei olhando as pessoas correndo e andando no canteiro central da avenida. Uma senhora estava sentada num banco enlaçando seu cachorrinho peludo com os braços. Ambos olhando pro nada. Não tendo que fazer nada. Só sentados ali, vendo a vida passar. Sorri. Aquilo era muito bonito. Quando comecei a pegar no sono uma criança que até então estava quieta no banco de trás, deu um berro bem no meu ouvido: -“OLHA MÃE!” e apontou – raspando o braço na minha cabeça – prum carro que estava parado ao lado. Um daqueles que os entusiastas a bandidos-esportistas-playboys possuem, que tem aquela coloração amarelo-Ferrari e que eu nunca vou poder ter nessa vida – ou não. Não consegui pegar no sono novamente. A criança foi ligada no 220v depois que viu o carro e ficou o restante da viagem matraqueando sozinha. Comecei a ficar com fome. Quando a lotação estava entrando no terminal de ônibus, ainda pude ver, ao longe, a traseira do ônibus que eu poderia estar dentro (gerúndio?) se não tivesse esquecido o crachá ou a chave. Fiquei lá no ponto de ônibus. O segundo do dia. Olhei o relógio. 09:57h. Meu horário de entrada é às 10:00h. Eu tinha 3 minutos pra percorrer o percurso que é feito, num dia bom, em 15 minutos. Quinze minutos depois, consegui embarcar num outro ônibus. Cheio. Durante toda a semana, cheguei no horário. Durante toda a semana, não peguei trânsito. Mas, ah, no dia de corno, IMA-GI-NA se eu teria tamanha boiada! Desci no ponto às 10:40h e, fodido por fodido, decidi entrar às 11:00h, depois de tomar café no restaurante adjacente à empresa. Mas lembrei que esqueci o vale alimentação em cima da mesa do computador e que as moedas de troco que eu pego estavam na mochila. Mochila lá em casa. Meu cartão de débito está com o chip quebrado e vira e mexe as pessoas do caixa retiram-no da maquininha e o chip fica preso dentro. O que acaba gerando um certo desconforto. Abri a carteira. Cielo por toda parte e nenhum quinhãozinhoinhoinhoinho que seja. Fiquei cinco minutos sentado no refeitório amolando meia dúzia de facas pra enfiar na garganta das pessoas que cobrarem um “bom dia” ou satisfação do meu atraso. Entrei na central. Ninguém me deu atenção. Consegui sorrir. Então ouço: - “Mal-educado como sempre né? Chega e não dá bom dia pras pessoas...”. “Abstenção de comentários”, foi o que minha mente falou. Obedeci-a. Bati meu ponto e no mesmo segundo cai uma ligação. Olhei pro telefone. Eu ainda não estava pronto para enfrentar aquele dia, aquelas pessoas desesperadas ao telefone. Estava sem forças pra enfrentar o meu próprio mau humor, como enfrentaria o dos outros? Não daria certo. Adiei mais alguns minutos. Muitos minutos. Ainda não estava pronto. Quando por fim atendi, fiquei sete minutos tentando colocar na cabeça de uma toupeira uma informação e só consegui tal façanha no último minuto, quando perdi totalmente a paciência. Eles só entendem no grito. Você no primeiro instante passa a informação e o energúmeno não entende e pede pra repetir. Você repete e ele não concorda. Na terceira ele começa a choramingar. Na quarta te tira a paciência e na quinta entende e sai com o rabo entre as pernas, depois que já te deixou à beira de um colapso fomentado pela vontade de esmurrar o primeiro desgraçado que falar um A torto pra você. Mas tudo bem, também. Mentira. A pessoa que me cobra o bom dia começa a alisar o meu braço e a falar: -“Caaalma, caalma... você está estressado por pouca coisa, mal chegou e...”. Pensei um pouco. Por fim, falei. Dali meia hora ela me pediria desculpas pela intromissão. Peguei dinheiro emprestado e fui tomar o café da manhã. Também não aconteceu nada de extraordinário: não cobraram à mais, não derrubaram catchup no meu tênis e veio o lanche correto. Entrei no elevador e sorri pra mim mesmo. Tinha uma casca de pão considerável colada entre um canino e o dente do lado que deve ter algum nome aí além de simplesmente “dente do lado”. Tudo bem. Voltei, peguei escova e pasta e fui até o banheiro. A mulher da limpeza tinha acabado de entrar lá. Colocou o latão na porta, que simboliza que a parada está interditada. Ela iria demorar. Bebi um copo d’água e pensei pelo lado positivo: “bom, do jeito que a coisa anda, não há problema ficar com casca de pão nos dentes... que motivos tenho eu, para sorrir, afinal?”. Sorri na hora do almoço. A coisa estava farta e bem bonita. Sorri para as batatinhas smiles. Murchei o sorriso quando a dona do restaurante falou que tinha falado para a trapezista do circo que estava armado numa temporada ali perto que eu era apaixonado por ela. Quase que cuspo a comida na hora. Ah, diabos, com que cara eu olharia para aquela deusa, agora? Como que para responder minha pergunta, ela entra no restaurante. Senti até o dedão do pé ficando vermelho. Uma das cozinheiras começa a olhar pra minha cara com ares de criança sapeca. Eu quis morrer, na hora. E a trapezista, com seus deltóides definidos, desfila pelo restaurante, enchendo seu marmitex até o teto, com um sorriso natural nos lábios, encantador, derretedor. A trapezista... Casada com o trapezista. Pendurou a sacolinha com sua marmitinha no guidão da bicicleta e voltou pro circo. Depois do almoço, tentei dormir e pra variar, acordei batendo o pé no chão. Ultimamente tenho sonhado bastante que estou no banco do carona de um carro que dá uma freada brusca. Tento cochilar novamente e consigo. Sonho com um sorriso lindo, com cabelos levemente avermelhados - presos num belo coque – e ambos incrustados numa bela mulher que usa um vestido de noiva, de verão (curto, deixando os ombros à mostra) e vem em minha direção. Eu, em cima de um púlpito fincado na areia de uma praia deserta e maravilhosa. Ela sorri pra mim e diz “sim”. O celular toca. Como cochilei com um braço em cima dos olhos, acordo com a visão meio que nublada. Péssimo. Consigo escovar os dentes e volto pro trabalhinho de sempre. Consegui “terminar” o texto agora, 19:05h e olha que comecei ele às 12:00h! E agora pretendo ir ali na Augusta beber um chá gelado com menta e comer um bolo vegan de cenoura com chocolate e ver umas belezinhas e a vida passar. E depois vou chegar em casa e bem, vou passar raiva com alguma coisa, provavelmente com o computador naquele estado deplorável que já descrevi aqui. À propósito, alguém aí sabe como eu faço pra entrar alterar a senha de logon naquele Setup antes da inicialização? Fico agradecido se puderem me ajudar. E se eu não publicar nada nos próximos dias, vocês já sabem o que aconteceu e podem ter certeza de que eu estou puto da vida e vou morrer de saudades de todos vocês, meus amiguinhos cibernéticos. Beijos, tchau.0