INSUBORDINAÇÃO MENTAL
- Eu é que sei? Só posso dizer que a coisa anda preta.
- O jeito é apertar o cinto.
- Já apertei. Não sobrou nenhum furo.
- Fure outros. Vá furando até o infinito."
Diálogo dos pessimistas
Carlos Drummond de Andrade
O diálogo acima surpreende pela ironia, mas aos poucos observamos com tristeza que são frases presentes nos diálogos cotidianos. Quem nunca falou que a coisa está preta? Alardeou a necessidade de apertar o cinto?
A ordem política, social e econômica é entendida muitas vezes como uma coisa indefinida, nossas impossibilidades como cintos apertados até o infinito. Não haveria uma deliberada omissão de cada um na falta de atitude? Os cintos apertados não seriam verdades exauridas?
Não podemos deixar o pessimismo descolorir nossos olhares, nem um lúdico arco-íris nos aprisionar em alienadas versões. A realidade é mais dinâmica do que tais determinações e deve ser construída com criatividade por cada indivíduo. Criar é ser humano em sua plenitude.
Como disse Picasso: "Todo ato de criação é, antes de tudo, um ato de destruição". Sob este olhar, o ato criativo é um ato de insubordinação contra a ordem vigente e de reconstrução de uma nova verdade em um contexto contemporâneo. Se analisarmos dois mitos das tradições grego e judaico-cristã, Prometeu e Adão e Eva, verificamos que a criatividade está no ato de rebelião contra o poder onipotente. Criar uma nova realidade, um mundo mais justo, não é deixar se apoderar por percepções vencidas, mas se armar para a luta pelas próprias convicções, criar as abordagens apropriadas e sua penetração no mundo. Não é fácil o nascimento do ato criativo, devemos destruir alguns alicerces exauridos e fazer a "coisa".
"Mas a coisa está preta" justificariam os pessimistas; "ainda há cinto para ser apertado", alguns se conformariam, e outros ainda achariam que "a coisa não está tão ruim como parece". Apesar de tantas opções, de tantas personalidades e visões, otimistas ou pessimistas, há de se fazer as coisas...
A adolescência de Carlos Drummond de Andrade, autor da crônica Diálogo de Pessimistas, é marcada por um fato extraordinário: o poeta foi expulso do Colégio Anchieta da Companhia de Jesus em Nova Friburgo sob a alegação de "insubordinação mental". Resta-nos indagações... O que significaria insubordinação para os regentes do colégio interno? Seria não acreditar nas mesmas coisas? Seria construir a individualidade alicerçada nas próprias verdades?
Carlos Drummond de Andrade, diplomado em farmácia em Ouro Preto, colaborador de diversos jornais, funcionário público, escritor, poeta, com obras traduzidos em inúmeros idiomas, foi um insubordinado ao criar a individualidade do autor e valorizar suas verdades e contradições. A suposta insubordinação mental que cicatrizou em sua adolescência marcou toda uma geração e certamente marcará para sempre a história da literatura brasileira.
E você, leitor? Permanecerá subordinado às coisas pretas e aos cintos apertados ou já começou o seu processo de criação?