24. No restaurante do comboio 226
Cinco carruagens atrás da 95, onde fica a cama 71, cama onde vou dormir a noite de 10 para 11 de Julho, encontrei o restaurante do comboio Roma – Bercy. É ainda um bom esticanço. Exige uma boa forma física e bastante equilíbrio. De outra forma, corremos o risco de cair ao comprido no corredor e de ficarmos com algum osso partido ou com nódoas negras no corpo todo.
Escolhi pasta e não quis vinho. As mesas estão todas ocupadas. O senhor está só? Estou.
A mesa lá no fundo, por favor. Prego, como se diz aqui. Apesar de o comboio ser francês, é curioso, os tripulantes são todos italianos e não pescam uma palavra em francês.
A mesa fica no extremo oposto ao bar, porém, tem a vantagem de ser o melhor ponto de observação de toda a sala. Tudo casais, só eu destoo, homem e mulher, um casal homem e homem, pai e filho ou dois amantes, e eu.
Meti a pasta do portátil, com todos os meus pertences mais importantes, bilhete, óculos de sol, livro de Leonardo da Vinci, câmara digital, M P- 4 e telemóvel, na cadeira vazia defronte da minha. Não quis arriscar deixar tudo aquilo na cabine.
Veio a pasta de tomate. Encruada e deslavada. Será costume daqui? Dos Açores de certeza que não é. Chegaram mais duas pessoas, dois rapazes novos, no entanto, vão para o balcão. O criado vem de novo com uma nova travessa, não sei se será também para mim ou não, vou ver, vi, passou e não deixou nada, irá buscar mais, não parece. Foi-se embora.
O meu dente molar furado, o chumbo caiu no dia em que embarquei para Paris, começou a querer incomodar-me. A pasta entra na cova e instala-se na cova e incomoda. Com a ponta da língua consigo expulsar o que se mete na cova. Porém, não sei como o evitar.
Optei pela ‘Pasta Ricca,’ 18 euros: ‘Primo piatto, Contorno, Frutta e Dessert.’ Não sei bem porquê, não consegui decifrar o italiano, vou vendo. O primeiro já vi, era a tal pasta encruada, ou melhor macarrão mal cozido com tomate. Eu não faria pior.
Casas e mais casas, que parecem sair do chão como as pedras, as canas ou o trigo e tal como chegam ao janelão da carruagem desaparecem no janelão da carruagem. Rapidamente. Campos sem fim de trigo. Trigo e mais trigo. Os vidros da carruagem estão sujíssimos.
O criado deixou duas fatias pequenas e finas de pão. Avancei um bocado na leitura ds biografia de Leonardo da Vinci de Sophie Chauveau. Comprei-o no Domingo que fui ao Louvre. Vem outra vez o criado, será que vou ser servido desta vez? Está quase noite escura lá fora. As luzes nos postes de electricidade parecem fósforos.
Uma jovem que acompanha um homem mais velho com ar de intelectual, de vez em quando, olha para mim pelo canto do olho como reparei há dias que as mulheres costumam fazer. Finjo não notar. Ela redobra o olhar. Olho para aquela banda sem dar a entender que quero ver. Insiste. Isto parece que se chama fazer jogo. Já não o fazia há muitos, muitos anos. Já nem sei se é assim que se faz. Nem se o que faço é o modo de o fazer bem.
Está abafado, seria bom se pudesse tomar um banho de chuveiro, mas, como é coisa que não posso ter, e como aprendi a desejar só aquilo que posso ter, enxotei o desejo para bem longe com sucesso. Talvez logo encontre alguém chato na minha cabine. Só o saberei depois de Florença. Na ida para Roma tive sorte.
A jovem volta à carga, estou destreinado e não tenho tanto a certeza de que seja isso, mas tirou os sapatos e exibe as pernas bronzeadas na minha direcção.
Toca o telefone, não atendo, ela redobra o jogo. Será porque quer competir com o telefonema? Sinto-me abafado. Não há ar condicionado.
Vem o segundo prato: legumes iguais aos que compro congelados no Modelo e descongelo no microondas. Toca de novo o telefone, não atendo, o charme do homem só que não atende o telefone, torna o homem irresistível e a moça redobra as manobras.
Isto nem de propósito, juro que não é artifício, sabem qual é a música que oiço agora mal sintonizei o meu telemóvel? La Donna è Mobile de Pucinni.
Entre Roma e Paris
10 de Julho de 2010