Deliciosa dependência
- Oi, onde estás? Ah! Está bem, então tá, quando chegar me liga. Pronto, já podia voltar a trabalhar, meus anseios de saber por onde ela andava já tinham sido saciados. E já que posso voltar, aproveito para apresentá-la a vocês: Ela é a pessoa mais verdadeira e solícita que conheço, está sempre pronta a atender a todos, sejam quais forem suas necessidades, o que, aliás, já nos renderam algumas discussões. – Não acredito que emprestou o cartão de crédito outra vez e levou o cano de novo? Disse a ela em uma de nossas raríssimas divergências, não obtive resposta, ela nunca pensa sobre os próprios atos quando se trata de ajudar alguém, mesmo que eles lhes rendam algumas dívidas.
Nesse e em outros muitos pontos somos antagônicas. Ela, ariana, metódica, companheira, serena, mãe exemplar, comprometida, organizada; eu, o oposto de tudo isso, uma típica geminiana, vivendo entre os altos e baixos da minha montanha russa particular. Devem estar se perguntando por que eu estou dedicando um texto inteiro para falar sobre ela. Querem saber? É porque embora sejamos completamente diferentes não conseguiria viver sem ela. Desorganizada como sou, adivinhem quem toma conta das minhas contas, meus extratos bancários, me avisa sobre as faturas dos cartões de crédito, me lembra sobre aniversários de parentes e amigos? Pois é, já tentei me tornar parecida com ela, comprei até um caderninho de capa vermelha igual ao dela, consegui durante umas duas semanas fazer anotações sobre minhas despesas, mas depois, meus ímpetos de desorganização voltaram a reinar e, quase que voluntariamente, se é que me entendem, perdi o caderno. Que alívio!
Na verdade, gosto dessa dependência, assim, mesmo quando não temos assunto para conversar, roubo um tempinho do meu trabalho, pego o celular e: oi, conseguiu fazer o pagamento? É claro que eu já sabia a resposta, mas é sempre muito prazeroso fugir por alguns segundos da rotina do trabalho e escutar sua voz doce, quase melancólica. Sendo assim, por ora, permaneço incapaz de gerir minha vida financeira.
Além dessa dependência, devo confessar outra. Sou viciada em suas opiniões, quero saber o que ela pensa sobre minha vida, então vou lhe abrindo todas as páginas de meu diário, ela sabe de tudo, meus amores do passado e minhas pretensões amorosas para o futuro, minhas histórias trágicas e cômicas, meus desejos, minhas inquietações, meus sonhos, meus ódios, meus rancores, meus medos. Ela sabe de tudo. Isso lhe rende, é claro, certos incômodos, um deles, por exemplo, é que de vez em quando seu telefone toca altas horas da noite e adivinhem? Eu preciso ler para ela a minha mais nova composição poética, mesmo sabendo que ela mais dorme do que escuta, leio tudo e se gaguejo, sinto muito, mas volto a ler tudo novamente. Ela nunca reclamou, mas eu imagino que não deva ser muito agradável acordar no meio da madrugada para atender a uma viciada. Por isso, às vezes, tento, mas, só tento, me conter e esperar o dia chegar.
Às vezes me pego pensando, ao olhar para ela, o que aconteceria se nos separássemos? O que eu faria? E não estou falando sobre as contas, essas, eu daria um jeitinho de administrar. Mas, para quem eu ligaria no meio do expediente? A quem confiaria todos os meus segredos? Quem me ajudaria com as mudanças físicas e psicológicas? Quem seria minha leitora em potencial? Quem suportaria minhas bagunças? Quem seria tão tolerante a ponto de aceitá-las silenciosamente? Afinal, Com quem dividiria minha vida?
Já que não encontro outro ser para ocupar em minha vida esse espaço proporcional às tarefas que a ele estão atreladas, só me resta pedir a Deus que nos deixe envelhecer juntas, que nenhuma de nós duas volte às nossas moradas espirituais sem que a outra siga logo depois; creio que compramos a passagem de vinda juntas. Quando chegamos aqui, eu primeiro, ela três anos depois, estávamos de mãos dadas em algum lugar lá em cima, então nossos pais resolveram: ” vamos ter duas filhas”. A primeira, apesar de mais velha, será como o fogo, incendiará nossos corações, esquentará nosso lar e queimará tudo que estiver nos afligindo; a segunda será cristalina como água, abrandará nossos corações ardentes, inundará nosso lar de delicadeza e nos ajudará a engolir as intempéries de nossas existências.