PARADOXOS E DILEMAS

PARADOXOS E DILEMAS

“semeai livros a mancheia, fazei o povo pensar”

Castro Alves

No decorrer dos dias, entre um café e uma leitura pouco compenetrada em alguns tópicos de Direito Público, alguns fatos da interessante vida política local, por vezes, chegam aos meus ouvidos. Muitos desses, aliás, repetição monocórdia da vida política nacional, ecoam no vazio, ante um artigo de lei e um parágrafo doutrinário. Non sense factual deprimente de todos nós conhecido.

Entretanto, nos últimos tempos, o panes et circences parece não ofuscar uma série de circunstâncias que teimam em se mostrar desastrosas para o atual governo local e paradoxais para nós, eleitores. Confesso, pelo menos para mim, que até onde sei, esse “boato” de derrubar uma escola para desobstruir o fim de uma rua, é de uma incongruência instigante.

Portanto, se me permitirem os caros leitores, gostaria de tracejar algumas linhas, de modo a lançar mão de alguns desassossegos que me tomam horas de sono, nas últimas semanas.

E para tanto, antes de adentrarmos ao punctum saliens da quaestio, alguns volteios pela filosofia política, salpicados de um torrão de justificativas, caem bem. Assim, evocando a crença de Hannah Arendt na ação do homem e na sua capacidade de "fazer o improvável e o incalculável", e na outra ponta, a sua concepção de política como o convívio dos diferentes e não dos iguais, postulado da pluralidade dos homens; não descartem, vocês, que se debruçaram sobre esse texto, a necessidade de se buscar argumentos contrários aos que serão, a partir de agora, lançados.

Desse modo, com o adequado respeito que as autoridades merecem – afinal, não quero receber a alcunha de “cretino”, que por vezes é atacada à face dos que ousam externar seus pontos de vista temperados com a voz da indignação -, quero ainda valer-me da filósofa judia para tomar emprestado um trecho de sua obra “O que é política?”: “A política, assim aprendemos, é algo como uma necessidade imperiosa para a vida humana e, na verdade, tanto para a vida do indivíduo maior para a sociedade. Como o homem não é autárquico, porém depende de outros em sua existência, precisa haver um provimento da vida relativo a todos, sem o qual não seria possível justamente o convívio. Tarefa e objetivo da política é a garantia da vida no sentido mais amplo".

Dessa forma, advertidos estamos todos da importância que circunda cada decisão que tomamos, uma vez que cada ato por nós praticado, além de nossa esfera individual, revela-se em um ato político.

Considerando, dessa forma, que o sentido da política é a liberdade. É necessário exercer tal liberdade a partir dos parâmetros legais. Assim, de nossa parte, permitido nos é fazer tudo o que a lei não proíbe. Da parte dos detentores do poder político, somente lhes é dado fazer o que a lei determina. Tal conceito é chamado de Legalidade Restrita. Enfim, a Administração Pública somente poderá agir secundum legem.

Ocorre que a utilização do poder político, que se revela nas prerrogativas do cargo público deriva de uma situação instrumental, ou seja, os políticos gerem o poder, derivado da Soberania Estatal, em nosso nome. São instrumentos de concretização do interesse público.

E nesse pormenor, vale lembrar o disposto no artigo 1º, parágrafo único, da Constituição Federal; de que todo poder se origina junto ao povo, nós todos; sendo exercido por nossos representantes. Representantes eleitos através do sufrágio universal, a partir de um visão de mundo que entendemos mais próxima ao nosso modo de sentir a realidade, denominada de plano de governo – pelo menos, teoricamente isso funcionaria assim.

Desse modo, cumprindo o agente público um papel instrumental, a legitimidade de sua atuação repousa na obediência à lei. E para tanto, deverá se valer sempre de dois balizadores, quais sejam, a supremacia do Interesse Público e a indisponibilidade desse Interesse.

Trocando em miúdos, o fim público previsto na lei é maior que o fim particular, ou outro fim público fora da previsão legal; e mais, tal fim público não poderá ser esquecido, jogado por terra, abandonado. Essa concepção das coisas é imprescindível e absoluta à quem ousa gerir o destino dos homens, ocupando um cargo eletivo.

Temperando tudo isso, vem à luz o Princípio da Moralidade Administrativa. Ou seja, é defeso ao administrador o agir dissociado dos conceitos comuns, ordinários, válidos hoje e desde sempre, do que seja honesto, brioso, justo. Mais que uma moral comum, trata-se de uma moral administrativa, a qual parte do pressuposto de que o agente administrativo, como ser humano que é, possui a capacidade de distinguir o Bem do Mal, o honesto do desonesto.

Assim, o agente público não poderá esquecer do elemento ético de sua conduta. Além da decisão política de escolher entre o legal e o ilegal, o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente, o oportuno e o inoportuno, deverá levar em consideração o honesto e o desonesto; obedecendo também à lei ética da própria instituição, uma vez que nem tudo que é legal é honesto, non omne quod licet honestum est.

Last but not least, colocando mais fervura a esse cozido, existe ainda, a nortear a atuação dos agentes públicos, o Princípio da Razoabilidade, que segundo os ensinamentos do Celso Antonio Bandeira de Mello, pode ser explicado como a necessidade de sintonia das ações daqueles “com o senso normal da pessoas equilibradas e respeitosa das finalidades que presidiram a outorga da competência exercida”. Simplificando, são vedadas condutas desarrazoadas, bizarras, incoerentes.

Entendido todos esses conceitos jurídicos e filosóficos, peço licença para introduzir mais um ponto de vista. Acontece que a lei de uma maneira restrita, não pode prever todas as situações que poderá enfrentar o agente político. Nem com toda sua fértil elucubração, conseguiriam os dignos parlamentares tal ventura. Por dois argumentos, singelamente: a complexidade inerente à gestão pública e a evolução histórica, que exige sempre soluções legislativas inovadoras.

Assim, inerente ao nosso sistema de governo presidencialista, é dado ao chefe do Poder Executivo a possibilidade de praticar os chamados atos administrativos Discricionários. Tais atos se caracterizam por uma maior liberdade de ação na gestão pública.

Frise-se, no entanto, que discricionariedade não é sinônimo de arbitrariedade, uma vez que a legalidade sempre deverá ser observada. Lembrando que os valores constitucionais pairam sobre nossas cabeças. Já que, como lembra Caio Tácito, citado por Celso Antonio Bandeira de Mello: “A regra de competência não é um cheque em branco”.

Por tudo isso, vem a nossa ponderação: qual valor constitucional é mais importante que a educação (artigo 6º da Constituição Federal), para justificar a demolição de uma escola de ensino fundamental em um país que têm um índice de repetência de 32% na primeira série, contra Paraguai (14%) e na Indonésia (11%), e nos países desenvolvidos (3%). Explicações seriam bem-vindas.

A exposição dos motivos que levaram à conclusão da necessidade do Poder Executivo local agir em tal sentido, como deve ser em obediência ao Princípio da Publicidade, viria a calhar. Um discurso mais encorpado seria de bom alvitre.

Com tal providência, após nos debruçarmos sobre tais documentos, poder-se-ia tentar entender a razão para isso tudo. Poder-se-ia propor um debate mais aprofundado, levando em consideração a opinião das crianças que seriam desalojadas e dos pais destas, temerosos, justificadamente, das condições futuras em que seriam ministradas as aulas a seus filhos.

E vamos além, acreditamos que ouvir a opinião da população deveria ser a regra em qualquer ato que represente orientação a ser seguida na concepção da política de desenvolvimento e de ordenamento da expansão urbana do município. Ora, já se trata de uma exigência do Estatuto das Cidades, que através do Plano Diretor, busca garantir melhor qualidade de vida na urbe, ouvindo seus habitantes em audiências públicas, sob pena de nulidade de todo ato administrativo, por parte do gestor público, que fuja das coordenadas traçadas na lei. E isso considerando a questão de um ponto de vista conservador.

Ora, no caso em pauta, mutatis mutandis, as conseqüências, para o bem ou para o mal, são irreversíveis, principalmente para os que forem diretamente afetados por tal medida. Assim, o preceito da gestão democrática apresentado pelo Estatuto das Cidades (art. 2º, II, da Lei nº 10257/2001) é plenamente justificável.

Ademais, trata-se de um ato de lealdade para com a população, titular originária da Soberania Estatal. Quando o gestor público apresenta as razões que o motivaram a tomar essa ou aquela decisão política, vem ao encontro dos já mencionados Princípios da Legalidade e Moralidade Administrativa. Demonstrar a finalidade do ato administrativo é forma de se aplicar a lei eticamente.

Portanto, as razões pelas quais se justifica a demolição de uma escola, quiçá maiores que um problema de traçado urbano, devem ser apresentadas à opinião pública, de forma pormenorizada, através de um discurso convincente, incitando o debate, de modo a vicejar em conclusões ponderadas e sensatas que alcancem a melhor solução possível, com o menor ônus real.

Alexandre Gazetta Simões