Porto Alegre sobrenatural

Lá estava o centauro dentro da lâmpada. Inexplicavelmente. O garçom servia uma vela verde seguido pelo casal de gansos. Na mesa o Luis F. Veríssimo sopraria a vela, com indisfarçável ternura, cravando o garfo cínico na crônica feita de teclas e risos insuspeitados. Ao telefone o Saci pedindo silêncio ao querubinico velho alado descido de um aeroplano federal tomava posse de uma cadeira no Odeon. Havia grande mobilidade na rua. Pessoas fugindo da chuva. No sábado que ninguém esperava fermentava o dia seguinte de sol. Todos no Bric da Redenção caminhavam nus em busca de objetos: miniaturas da Torre Eiffel, cavalinhos, bonecas tailandesas, botões. O próprio Eiffel bebia uma cerveja na Lancheria do Parque saudando o inalterável Nino bonachão. Gente de Encantado transmigrando magia a espera de um monarca de rua trazendo recordações em profusão.

Circula livremente no Parque da Redenção Paulo Santana de La Mancha. Recorre em ônibus noturnos os versos urbanos recolhidos por entre as dores do mundo. Versos recolhidos de fábulas recentes e gols. Por zelo ou distração, nada poderia escapar dos olhos de Claudio Moreno com sua gramática repleta de palavras dispostas corretamente para nutrir os pensamentos mais loucos. Como um raio produzido pelas luzes inexplicáveis da alegria. O pintor Gelson Radaeli esgotado de imagens faz ginástica na Praça da Alfândega.

Perto de mim explode uma Feira do Livro. Estoura como balões coloridos a saudade que se combate com amigos e sonhos. Pois a despeito da fantasia o escritor de novelas anônimo, vestido de colombina, segue escrevendo seus amores no Zelig, em plena Cidade Baixa. Sem guias, sem catálogos, sem edição. Voando para o mar de bicicleta impelido pelas paixões extras do amor na fonte.

Sempre nas altas da madrugada David Coimbra espia o estádio Olímpico. Implacável. Quando percebe está diante da aliança de ouro mergulhada como adeus dentro da garrafa de água mineral. Ora, na fonte que, múltipla, rica, agora se perde na pobreza honesta das coisas que se pode ver... Tudo requer filosofia de Ruy C. Osterman por onde a nova caminhada procura suavizar novamente a engenharia do azul sobre a visão serena de Moacir Scliar. Onde o calor das faces amarelas dispersam nuvens de libélulas coloridas que seguem atrás de seu suor no Parcão. Pila Vares espera na esquina da Praça Garibaldi a fome de amigos no Restaurante Copacaba. Estela e Rô. Comem minha identidade nessa praia urbana de italianos.

Sem densas nuvens de medo procuram Lya Luft. Ela que veja na rvista antes que busque fantasmas atrasados, soltos, desses que telegrafam durante a noite ao seu olhar de meiguice um pedido de memória. Pronto a nos dizer: melhorem. Quando o suor soprando sinos de cansaço descansa na grama do Gazometro. Nítido o poeta Luiz Selistre ateia fogo em seu relógio para nascer no tempo um novo modo de sentir e ler as manhãs, que em comum a ele, brotam generosas. Vou apanhar melodias e cidades inteiras percorrem minha mesa, meus papéis, minha distância de nuvens. Misturado aos meus heróis lembrados entre fatos diversos de livro, de jornal, de tiras de Moa, de Santiago, de Bier. Rogando perdão ao direito de uso da imagem em minha mão.

Toda alma é como um filme na paisagem.

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