O POÇO DAS VIRTUDES
Nunca se julgue acima do bem e do mal...
A assertiva, dita por célebre comentarista, a propósito da postura adotada por certos indivíduos durante a vida, afirmando que, a qualquer momento, poderá acontecer uma descoberta pouco agradável sobre a real condição íntima de cada um e, então...
Ouvi contar - numa roda de fino anedotário - que, na Itália existia perdida no interior da Calábria, uma cidadezinha que possuía um poço milagroso o qual tinha o condão de aferir a evolução espiritual das pessoas, ou seja, analisava se a criatura a ele submetida era boa ou não.
O procedimento era simples: ficavam à beira do poço tabuinhas de madeira, nas quais os indivíduos escreviam seu nome e atiravam-nas às águas do mesmo. Se a alma fosse considerada boa, a madeira afundava e emergia com características modificadas, conforme a avaliação; se fosse considerada má, a tabuinha afundava e não mais retornava à superfície.
Existia no lugarejo um sujeito chamado Comendador Gennaro, tido como um paradigma de retidão, de bondade, de pureza. Religioso ao extremo, jamais deixava de comparecer à igreja da comunidade, onde era tido como alma verdadeiramente boa. Nunca se ouviu dele qualquer palavra menos digna; um gesto que o deixasse na condição de pecador...
Muitos insistiam para que o Comendador atirasse seu pedaço de madeira ao poço a fim de ser medido o grau de evolução de sua alma. Entrementes, Gennaro, que também almejava o desejo de "mandar ver", tinha medo - desconversava com uma desculpa qualquer...
Até que, certo dia, andando por lugar ermo, nos arredores da povoação, foi abordado por uma quadrilha de salteadores que lhe disseram:
- A carteira ou a vida!
Mas, desgraçadamente, naquele dia saíra sem nada nos bolsos, a caminhar e sequer se apercebera o quanto se afastara. Como nada tinha, só lhe restava entregar a vida aos bandidos.
Então, o chefe da quadrilha perguntou-lhe:
- Tens um último pedido antes de morrer?
Comendador Gennaro respondeu:
- Pois é, sempre quis jogar meu pedaço de madeira no poço das virtudes, entretanto, nunca tive coragem, mas, diante das circunstâncias, agora quero fazê-lo.
E todos foram à beira do poço. Em lá chegando, o Comendador apanhou um pedaço de tábua, escreveu seu nome e atirou poço adentro. A madeira ao contato com a água, agitou-a obrigando-a a descrever círculos e foi afundando, afundando... A expectativa era geral, pois até os bandidos sabiam da fama do homem. Passados alguns minutos, a madeira não retornou à superfície da água.
Então, entre chistes e gargalhadas, o chefe dos bandoleiros atirou seu próprio revólver no poço.
A arma agitou as águas e afundou. Rapidamente, porém, retornou para surpresa de todos, trazendo seu cabo de madrepérola transformado num buquê de flores.
Moral da história: as aparências enganam e, muito mais que se possa imaginar...
Li alhures que, a esposa de certo dirigente religioso comprou um cálice dourado para suas cerimônias. Vendo o copo, o marido indagou com certa estranheza:
- Desde quando temos em casa utensílios de ouro?
A mulher tenta justificar-se, dizendo:
- Olha: não é ouro legítimo ; é apenas um cálice dourado.
- Minha cara, repreendeu o homem, com reprovadora frieza, o uso deste cálice não exprimiria apenas vaidade e arrogância? Ao usá-lo implantaríamos nesta casa também o engano e a mistificação...
Por estas e outras razões, é que o Mestre dos Mestres sentenciava: "Não julgueis para não serdes julgados"; "Vês o argueiro no olho do próximo e não enxergais a trave no vosso"; "Coais um mosquito e engolis um camelo".
Quer dizer, nem sempre será correto o juízo que fizermos desta ou daquela pessoa ou até de nós mesmos...
Poderemos transportar, em nosso imo, muita sombra, disposições malévolas que não enxergaremos, e até nos consideraremos eleitos do Senhor...
Todavia, se tivéssemos o tal poço à nossa disposição, o que revelaria sobre a condição de nossa alma?
Quem arriscaria jogar seu pedaço de madeira no mesmo?
Por ora...