Uma Herança Inestimável
Em busca do refrigério marinho e de momentos aprazíveis à beira-mar, inúmeros visitantes e turistas passam pelo nosso imenso litoral todos os anos. Atualmente, segundo fontes oficiais, circulam mais de 200.000 turistas na época áurea de verão em Torres, e há quem diga que esses números são ultrapassados, visto que, outrora, as divisas deixadas por estes turistas eram aparentemente mais significativas. Para uma época em que a economia litorânea é (quase obrigatoriamente) proveniente da prestação de serviços que acabamos conhecendo como turismo, onde o capital financeiro é o mestre-guia, é pertinente assimilar “que uma das ameaças à manutenção da herança cultural é o turismo massificado e sem controle, uma vez que ele destrói a identidade de cada lugar”, segundo a autora Marly Rodrigues*. Essa destruição da identidade de cada lugar é visivelmente palpável no cotidiano torrense, onde é mais fácil abafar os anseios de sua comunidade e obedecer à risca as “leis” impostas pela mesma nostálgica burguesia que em Torres, viveu seu “apogeu de ouro”, e hoje quer descansar no balneário em que desfrutou bons momentos de sua juventude, como se a população torrense não tivesse voz e nem representantes.
O sentimento paradoxal que move este humilde autor a escrever estas linhas é que inexiste uma contribuição mais valiosa para entendermos a formação da vila, (que futuramente seria vendida como “a mais bela praia gaúcha”, “a mais aristocrática” ou “cidade ambiental e turística”) que os relatos dos viajantes que por aqui transitavam, indo para o sul ou para o norte, obrigatoriamente passando pelo sítio das Torres. A herança inestimável a qual me refiro, sem menosprezar os relatos de outros viajantes, é a passagem de Auguste Saint-Hilaire, pelo período em que passou e pela qualidade de suas minuciosas observações em pleno século XIX. Este viajante não tinha objetivos econômicos ou turísticos, muito menos veio tomar um banho de mar, o que o moveu até nossas praias foi o objetivo de chegar à região Cisplatina, realizando suas extensas pesquisas sobre o meio ambiente, principalmente em botânica.
Augustin François César Prouvensal de Saint-Hilaire, nasceu em Orléans na França, em 1774 e desde muito cedo se interessava pelas ciências naturais. Aportou em solo brasileiro juntamente com a missão francesa em 1816, permanecendo seis anos. Percorreu diversas províncias do Império fazendo detalhadas anotações, coletando amostras da exótica flora que encontrava, que conseqüentemente, resultou na elaboração de um imenso catálogo sobre a flora brasileira. Este naturalista percorreu aproximadamente 2.500 léguas (mais ou menos 12.000 km), viajando pelas províncias de Rio de Janeiro e Minas Gerais, pelo Distrito dos Diamantes e litoral do Brasil, as nascentes do São Francisco, às províncias de Goiás, São Paulo, Santa Catarina, e por fim, Rio Grande do Sul. Em 1822, retornando à Paris, compila suas anotações e inicia a publicação de sua obra Flora Brasiliae Meridionalis (1825).
Em suas andanças pelos pagos meridionais, perto do Uruguai, Saint-Hilaire acidentalmente envenena-se pelo mel de abelha Lechiguana, acometendo-o de grandes mazelas (os sintomas da doença o acompanharam pelo resto da vida, até sua morte em 1853), prejudicando-o consideravelmente em sua aventura pelas terras desconhecidas.
Este viajante, sua coleção de amostras botânicas, seu caderninho de anotações e seus escravos, desciam a planície costeira da província de Santa Catarina para o sul, chegando em solo riograndense numa segunda-feira 5 de junho de 1820. Nas descrições de Saint-Hilaire emergem informações significativas, cabendo a nós a interpretação deste legado tão precioso.
Vindo do norte para o sul, o sábio naturalista descreve:
“Sempre areia e mar. Enquanto nos dias anteriores só avistávamos uma praia esbranquiçada que se confundia com o céu na linha do horizonte, hoje ao menos, deparamos dois montes denominados Torres, porque realmente avançam mar adentro, como duas torres arredondadas.Cerca de uma légua daqui, encontramo-nos à margem do Rio Mampituba (pai do frio), que, atravessando a praia, se lança no mar, após separar a Província de Santa Catarina da Capitania do Rio Grande; passamo-lo do mesmo modo do que o Rio Araranguá. É também à guarda de Torres que se paga o pedágio. Continuando a viagem, chegamos ao montes que têm esse nome; um relvado muito rente ao chão, um pouco mais elevado que a praia, estende-se à beira-mar, acima do monte que fica mais ao norte.”
Para Saint-Hilaire que vinha do norte, despontava no horizonte, somente as duas falésias, que hoje nós conhecemos como Morro do Farol e o Morro das Furnas. Curiosamente o rio Mampituba é chamado por ele de “pai do frio”. Ainda não se sabe ao certo o que Saint-Hilaire quis transmitir, mas é associado a estação gélida (mês de junho) em que ele transpôs o limite entre as províncias, atravessando a foz do Mampituba. Esta travessia estava incluído no pedágio que se pagava na Guarda e Registro das Torres, instalada na fronteira da província no final do século XVIII, indicando a presença militar nos primórdios do vilarejo.
Descortina-se na narrativa um período de povoamento embrionário e da consolidação do poder eclesiástico-militar, através do início da construção da Freguesia de São Domingos das Torres, finalizada em 1824 e da reforma que passava o Forte São Diogo das Torres construído em 1777, para deter a ofensiva espanhola que invadiu Desterro e prometia avançar para o sul, mas a ameaça cessou com o tratado de Santo Ildefonso no mesmo ano.
“Como há projeto de se localizar em Torres a sede de uma paróquia, começaram a construir aí uma igreja, da qual até agora existe apenas o madeiramento. Depois de passarmos por essa igreja, chegamos a um forte, cuja construção está sendo ultimada neste momento (...) embora não se acreditasse na invasão espanhola (...) voltado para o norte e podendo ser dotado de quatro peças de artilharia ”
Em relação à construção da fortificação, algumas observações são feitas sobre a mão de obra empregada. Aproximadamente trinta prisioneiros, proveniente das Missões, de Entre-Rios e do Paraguai, com a exceção de um indivíduo, o restante era composto por indígenas que utilizavam para se comunicar o espanhol e a língua geral, mas alguns vocábulos eram incompreensíveis porque, segundo Saint-Hilaire, não constavam no dicionário dos jesuítas. Com um olhar antropológico, fundamentado ideologicamente numa perspectiva etnocêntrica, Saint-Hilaire analisa o estereótipo dos trabalhadores:
“Esses homens são de estatura baixa, peito exageradamente largo, rosto de um bistre carregado, cabelos negros e lisos, pescoço muito curto, fisionomia verdadeiramente ignóbil.”
Comentando sobre sua estadia, percebe-se um certo contentamento por parte do estudioso naturalista. Hospedou-se na casa do alferes Manoel Ferreira Porto, a liderança militar que era responsável por fiscalizar a região e que já no início do século XIX fixou residência no local.
“Chegado à residência do alferes, mostrei-lhe meus documentos, sendo muito bem recebido e hospedado numa pequena casa, onde ficarei sozinho e donde se avista o lago.”
Esta humilde casinha que hospedou Auguste Saint-Hilaire, ainda resiste ao tempo e enche nossos olhos de admiração, a casa número 1 de Torres, localizada na parte ocidental da torre Norte (hoje, Morro do Farol). O lago que o encantou é a lagoa do Violão, naquele tempo ainda mais exuberante, com as condições geográficas iniciais preservadas e os contra-fortes da serra completando o cenário.
“Quase ao pé do monte estende-se, paralelamente ao mar, um lago de águas tranqüilas e cercadas de altas ciperáceas; do outro lado, crescem matas em terreno plano. À direita vêem-se ainda areais puros e, por fim, o horizonte limitado pela grande cordilheira, cujo cimo forma um imenso planalto.”
É como se eu projetasse este naturalista francês à minha frente, com a testa franzida e olhar longínquo, dizendo: “(...) local donde gozei um panorama que se me afigurou mais encantador do que efetivamente era (...)” - e eu concordando com a cabeça, tentando imaginar o que os seus olhos registraram naquele inverno de 1820. Teria sido um entardecer maravilhoso?
No dia seguinte, 6 de junho, parece que as dispendiosas jornadas pelas veredas da “Terra Brasilis”, do interior para o litoral, do norte para o sul, percorrendo as mais inóspitas regiões, Saint-Hilaire decide tirar um dia de folga. Fica mais um dia no sereno lugarejo das Torres, descansando e colocando em ordem suas anotações e pertences.
Parece que se sentiu bastante à vontade. Será que cogitou em comprar uma casa para passar as férias? Quem sabe, se ele vivesse mais cem anos e presenciasse o surgimento do turismo, a expansão do povoamento e suas conseqüências...
Certamente, seus relatos teriam outra entonação.
A justificativa para não prosseguir sua jornada rumo ao sul, era o desgaste físico, Saint-Hilaire dizia estar muito cansado. Porém a fatiga não o impossibilitou de vislumbrar novos horizontes. Partiu para conhecer as praias da porção sul, atualmente Praia da Cal, Morro das Furnas, Praia da Guarita e Torre Sul, sucessivamente. A Torre Norte, atual Morro do Farol, aos olhos do naturalista:
“É alongado, desigual e quase totalmente coberto de relva; o avanço que faz para o mar é arredondado como uma torre; oferece às ondas uma muralha de rochedos cortados a pique e termina por um terraço onde vegeta uma erva rasteira.”
Dentre as análises botânicas, o pesquisador cita espécies que compõem o ambiente das encostas das falésias até os dias atuais:
“Pelos flancos do monte crescem, em alguns lugares, duas espécies de cactus, um grande eryngium, bromeliáceas e arbustos, entre os quais reconheci, com surpresa, a mirtácea denominada pitanga, que nunca tinha visto nesta costa.”
A Torre do Meio, que hoje chamamos de Morro das Furnas, a maior formação rochosa que aflora à beira-mar, é descrito dessa maneira:
“O mais meridional dos dois montes principais está situado a algumas centenas de passos do primeiro; avança bastante pelo mar adentro, porém não apresenta forma regular e quase por toda parte é coberto de relva. Do lado do mar, igualmente escarpado, exibe uma chanfradura profunda, onde as ondas vêm quebrar-se contra as negras rochas.”
E ainda, impressionado, cita uma das furnas do morro:
“À entrada dessa chanfradura, do lado norte, há uma enorme caverna onde dificilmente se entraria, por causa do mar e da direção vertical dos rochedos.”
A praia da Guarita, que viria a ser o cartão-postal de Torres, extremamente valorizada pela “era turística”, é assim relatada por este visitante de opinião singular:
“Além desse último monte, vê-se ainda um terceiro, muito menos importante que os dois outros, com feitio de uma albarda, sendo quase por todo coberto de relva. Na frente, um rochedo exatamente paralelo ao seu corte, configurando uma inacessível muralha íngreme.”
Auguste Saint-Hilaire não esconde sua preferência pelos recantos que conheceu, anotando que:
“É do primeiro dos três montes que se frui o mais agradável panorama; pois dele se avista, ao mesmo tempo, o alto-mar e o lago de água doce (...)”
A detalhada observação do autor, omitiu um elemento que é fundamental na complementação do panorama ambiental de Torres, principalmente se avistarmos o alto-mar. A formação basáltica que se eleva à leste, que conhecemos como ilha dos Lobos, devido aos lobos-marinhos e outros “visitantes marinhos de inverno” que também, usufruem um prazeroso descanso, prestigiando o panorama das torres. Mas, Saint-Hilaire como todo ser humano estava suscetível a deslizes. Suas descrições nos oferecem um rico panorama ambiental da região, contando que este viajante continuou seu percurso, passando pela Itapeva, Estância do Meio (atual Arroio do Sal), Sítio do Inácio, e assim por diante, descrevendo Porto Alegre até os pagos meridionais do império brasileiro. Na Itapeva, por exemplo, onde ocorreram sucessivas ocupações pré-coloniais, com incidências de sítios arqueológicos, Saint-Hilaire oferece uma pista interessante, quando menciona a disposição das lagoas e sangradouros e chama uma delas de Lagoa das Conchas. Um sítio arqueológico, um sambaqui? Em toda sua viagem a riqueza de detalhes ressalta em sua narrativa, das vestimentas às acomodações, da arquitetura aos padrões culturais, a fauna e a flora, seu relacionamento com seus escravos e guias, suas anotações e seu cotidiano, enfim, as minúcias da realidade que estava vivendo. Seu discurso está calcado no eurocentrismo, fazendo estreitas comparações do que ele via no Brasil “selvagem” e do que tinha vivido na França “civilizada”. Existe uma forte carga emocional em seus apontamentos, demonstrando um melancólico saudosismo de sua terra natal, a França, e de seus familiares, principalmente de sua mãe, na qual insistentemente aflora em seus momentos de solidão.
Seguindo viagem pela via litorânea, passando por Tramandaí e descrevendo a paisagem, suas anotações denotam estreitas relações com a intenção de povoamento do extremo nordeste da região, baseada na mão de obra escrava, como relata a seguir:
“Nenhum gado no campo, nenhuma casa, apenas uma leva de índios prisioneiros, que eram conduzidos a Torres. Entre eles, mulheres, muito feias e desavergonhadas. Após a saída dos jesuítas, os índios das Missões tiveram como preceptores soldados e homens corrompidos; vivem atualmente da pilhagem, no meio das desordens da guerra, não sendo de admirar se suas mulheres não mais conheçam pudor. O Conde da Figueira, governador da Capitania do Rio Grande, envia os índios de que estou falando para Torres, pois aí tenciona fundar uma aldeia, projeto que só pode ser louvado.
O Brasil precisa de braços e é melhor para o Estado que seja povoado por índios, do que por ninguém. Esses que foram mandados para Torres não poderão mais ser nocivos. Mas levando consigo suas mulheres, terão depressa esquecido seu país e torna-se-ão, ao cabo de pouco tempo, cidadãos desta província, tanto quanto os índios podem sê-lo de uma província qualquer.”
São estes testemunhos que nos permite reconstituir o período inicial do povoamento na vila de Torres, anteriormente a vinda da imigração alemã (1826) e italiana (1890). O objetivo era constituir um processo de colonização ordenada, não somente trazendo a mão de obra escrava, mas propiciando elementos para a reprodução, e conseqüentemente, a ocupação de uma região que até então, era utilizada somente como trajeto terrestre obrigatório. Interpretemos como uma estratégia de demarcação e ocupação das regiões de fronteira. Em relação aos indígenas, Saint-Hilaire não esconde sua europeidade, considerando-se superior e civilizado em relação aos prisioneiros, usando algumas expressões pejorativas ele analisa os fatos como se os próprios indígenas tivessem culpa do seu miserável destino. Segundo o autor, depois da derrocada das reduções jesuítas, os índios missioneiros dedicavam-se a pilhagem e outros infortúnios que contrariavam as leis imperiais. Esqueceu-se, porém que os valores culturais não eram os mesmos, os indígenas eram os verdadeiros nativos desta terra que ele tanto observava, e que depois do contato com os colonizadores, (os que resistiram ao jugo cruel da cruz e da espada) foram atirados à própria sorte. No período contemporâneo em que nos encontramos, ainda deparamo-nos com a total exclusão dos povos indígenas brasileiros, que estão sujeitos ao “desenvolvimento econômico” da nossa ordem capitalista.
Acredito que se todos os visitantes e turistas que migram para nossas praias tivessem um pouco mais de preocupação com o meio ambiente e com a cultura local, já teríamos uma grande contribuição e a realidade seria diferente. Cada um de nós pode transformar ou perpetuar a nossa realidade. Não precisamos ser um Saint-Hilaire para fazermos História, basta sermos nós mesmos conscientes da nossa função, enquanto parte de um coletivo. Espero que este texto contribua para melhor compreensão do processo histórico que constituiu a maravilhosa cidade de Torres, em que você vive e está inserido diretamente ou passa férias, mas acima de tudo, espero ter contribuído para uma reflexão mais crítica e profunda de nossas existências.
• Marly Rodrigues escreveu um maravilhoso artigo intitulado Preservar e consumir: o patrimônio histórico e o turismo. In Turismo e Patrimônio Cultural organizado por Pedro Paulo Funari e Jaime Pinsky. Ed. Contexto, 2003. 3°ed.
• Todas as citações de Auguste Saint-Hilaire foram extraídas do livro Viagem ao Rio Grande do Sul, tradução de Adroaldo Mesquita da Costa, Ed. Martins Livreiro, 1987. 2°ed
*texto publicado no www.rslitoral.com.br coluna "História e Cultura."