Morte na Carne

Ouviram o meu último suspiro, mas não entenderam que ainda não era o meu fim! Pude ver um quatrilho que certamente transportaria um estorvo e, em sã consciência, pude imaginar o que pensavam... para uns, foi para o céu aquele santo-homem; enquanto outros, com mais sensatez e imparcialidade disseram:

– Chegou a hora e ele partiu para a morada do Senhor!

Mal sabiam eles que não fui a lugar nenhum. Estava ali mesmo, próximo, e tudo a observar.

Mas o tempo estava passando e o gélido mármore, mais uma vez, recebeu a carne, que o quatrilho não cedeu nem mesmo para os abutres para que um ente-querido, que chegara atrasado, se despedisse pela última vez.

As lágrimas saíam espaçadamente e, fingindo não demonstrar interesse, alguém na multidão, perguntou:

– O Testamento já foi aberto?

Vi o brilho reluzente nos olhos de cada um dos presentes, e as lágrimas evaporarem-se como éter no ar e todos os presentes correram em direção ao escritório do meu advogado.

Enquanto isso, o corpo estava sozinho e com medo; de repente, ele não estava mais sozinho; tinha as varejeiras como companheiras.

À distância, seguia a procissão ao encontro do representante da Lei. E ali, bem próximo, alguém preparava a minha última morada; retirava do barro, de onde viemos, outro morador. Esse, mesmo mais antigo, nada podia reclamar.

O homem que preparava a minha última morada, tinha como consolo no seu árduo trabalho, um líquido; água que passarinho não bebe.

Aguardando a minha comitiva que não chegava, o homem, que àquelas alturas já encontrava-se embriagado, dormiu.

Onde eu estava, e como me encontrava, podia ver mais uma vez o tempo passando e o quatrilho que não reaparecia. E ali estava o corpo... eu via o mesmo estorvo mais forte à cada minuto que se passava. Embora magro, ele ficava mais gordo a cada instante e as varejeiras cada vez mais festejavam o negrume que assumia aquele corpo, a mutação daquela pele.

Muito tempo depois reaparecia uma comitiva que não era a minha; era constituída por maior número de pessoas e esses traziam vários estorvos.

Entre aqueles estorvos, estava o “quatrilho” que antes compunha a minha comitiva. Pelo o que pude ouvir; decepção na abertura do Testamento–briga em família.

Apareceu muitos voluntários para compor novos quatrilhos, e ainda tentaram juntar aqueles últimos estorvos ao primeiro estorvo que no gélido mármore aguardava. Mas não conseguiram, nem mesmo, aproximar-se; pois restava forte odor pelo grande estado de putrefação. Todos os que ali chegaram, afastaram-se, sem ao menos conseguirem permanecer à distância...

Foi quando senti a solidão invadir-me, não o desprezível corpo, mas, a minha alma. Senti que não devia mais permanecer ali, deveria partir para outro plano; pois tinha percebido a MORTE NA CARNE!

Todos os meus trabalhos estão registrados na Biblioteca Nacional-RJ

carlos Carregoza
Enviado por carlos Carregoza em 16/10/2006
Código do texto: T265747