CADÁVERES SOCIAIS E A HIPOCRISIA COLETIVA

No Egito de 3.500 anos antes de Cristo, a grande preocupação com a morte era se buscar um meio de conservar o corpo. Osíris e Íris eram os grandes deuses, a quem os homens depois de passarem pela morte prestavam contas, de acordo com aquilo que prescrevia o LIVRO DOS MORTOS, uma espécie de código que continha as normas para o "além túmulo".

Se Osíris e Ísis viessem hoje para o nosso mundo, regressando da dimensão eterna provalvelmente não iriam sentir uma grande diferença entre lá e aqui. Talvez a diferença mais sensível e significativa é que lá se encontravam mortos esperando voltar a vida e aqui os vivos esperando o tempo de morrer.

No mais os antigos deuses egípcios se sentiriam em seu próprio território, como uma extensão dos limites do "inferno" por onde os cadáveres tinham que passar. Hoje a nossa Constituição Federal bem que poderia ser encarada como o "Livro dos Mortos". O antigo Código Egípcio não tinha nenhuma outra função a não ser conter normas para mortos. A nossa lei maior também se aplica a essa finalidade. Pelo total descaso para com a Lei, principalmente por parte de governantes, uma análise mais aprofundada mostra que a "Constituição" só tem valor para cadáveres ou só é aplicada a eles. Não é uma lei para vivos. É uma lei para mortos, porque a sua eficácia também é morta.

Os deuses egípicios também se deliciariam com o cortejo de "cadáveres sociais" que todos os dias temos que vislumbrar. Podemos assistir nos noticiários das redes de televisão a imensa massa social que se arrasta sem saúde, sem educação, sem trabalho, semo moradia, em um mínimo de dignidade, na condição de "cadáveres vivos" que agonizam a espera de um lugar onde possam repousar seus corpos fétidos, cansados, humilhados, feridos no que tem de mais precioso que é a dignidade e o respeito que se tem que ter pelo ser humano. Um enorme cortejo, onde os homens se arrastam pelos caminhos tortuosos do "inferno social" que vivemos nos últimos tempos, extenuados pela angustiante espera de dias melhores. Quantos miseráveis a margem da sociedade tem o corpo decomposto e a alma dilacerada e despedaçada por tantos infortúnios a que são diariamente submetidos?

Com certeza do livro dos mortos de cada um deles, estariam escritos todos os seus pecados, passados, presentes e até mesmo os futuros, e assim cada um, passando pelo julgamento que lhe cabe seriam condenados a perpetuarem pela eternidade as dores que já atravessam aqui na terra.

No Egito dos grandes faraós, os homens precisavam morrer para atravessarem o inferno e serem julgados para a felicidade ou a tristeza eterna; Absolvidos de seus erros poderiam retornar a seus corpos, que lhes servia apenas de capa, de envoltório, de veste.

Hoje no entanto, pela completa falta de humanidade, de humildade, de respeito para com o semelhante e descaso para com os demais seres humanos, muitos ainda atravessam o seu inferno aqui, nesta vida, neste país que dizem abençoado por Deus e bonito por natureza. Qual "Cadáveres Sociais" se entregam a travessia infernal, sem no entanto alimentar qualquer esperança de um retorno austéro ou pelo menos mais digno. Essa multidão de corpos decompostos pela corrupção social é que clama do meio do inferno para que lhes saciemos pelo menos a sede, sede de Justiça e de Igualdade. São eles, os nossos "cadáveres vivos" que da sua morte-viva, clamam a nós pedindo comida, água, casa, instrução, amor, respeito, solidariedade e fraternidade. E nós, como num grande funeral continuamos nossa caminhada, em silêncio, alheios a todos estes pedidos, ou o que é ainda pior, fingindo que não estamos ouvindo esses gritos e clamores.