Um dia de barata

O amor é lindo! Hoje vi com os meus próprios olhos como o danado é mesmo uma coisa encantadora, nos deixa bobos, sem reação diante da realidade nua e crua. Até então eu não acreditava nessa máxima que corre na boca do povo mundo afora.

Nos corredores do edifício onde trabalho e passo a maior parte do dia, já vi de tudo: jacaré com jacaré, mulher com mulher e até homem com mulher, união que, a cada dia, me parece mais escassa e complexa. Mas nada disso se compara com a indelicadeza que tomou conta das meninas dos meus incrédulos olhos no dia de hoje.

Um colega de trabalho cujo apelido é tico-tico me apareceu no corredor risonho e faceiro com uma enorme barata pendurada por um dos seus longos “bigodes”. A criatura, se é que posso dizer isto, estava viva, mexendo as pernas literalmente à vontade. Parecia um inseto valiosíssimo no aconchego daquela mão calejada e mansa. As pessoas que passavam por perto olhavam com asco, como se aquilo fosse algo perigoso, algo que pudesse comprometer a integridade do postulante adestrador de insetos.

A maneira como ele acarinhava o “bicho” era de extrema ternura, não havia nenhum sinal de medo ou repulsa. O olhar era comprido, sereno e firme. Como o de alguém que sabe exatamente o que quer e faz. Por seu lado a barata parecia entender e compreender o que estava acontecendo. Homem e bicho formavam um laço de convivência subliminar. Travavam uma conversa em códigos e solavancos, mas nada que não fosse suportado. O homem ria, gargalhava. A barata esfregava as patas, uma contra a outra, o que produzia um ruído diferente, mas não para o seu adestrador.

Depois de alguns minutos ou segundos, não sei precisar com exatidão, a barata, com o peso da conversa, desprendeu-se da mão do tal tico-tico e foi de encontro com a parede do corredor. Só que, a parede é revestida de fórmica, nisso ela não teve muita sorte... esborrachou-se no chão logo em seguida. Um cidadão que ia passando por ali, não teve dó nem compaixão. Meteu a sua botina 44, que estava mais pra galocha do que pra boina de gaúcho, na pobre coitada. O barulho foi característico... ploc! O corpo ficou espatifado no piso de cerâmica vermelha. Asas para um lado, pernas para o outro. O cidadão todo orgulhoso disse com veemência:

__ Acabou!!!...

O pobre do tico-tico, olhando para o corpo esparramado feito pasta de dente, olhou para mim e disse em voz embargada:

__ A conversa com seres inferiores nos tornam homens mais humanos e mais bonitos.

Para mim, foi como se aquele brutamonte estivesse acabado de matar o próprio Kafka.

O amor é mesmo um instante mágico.

Pedro Cardoso DF
Enviado por Pedro Cardoso DF em 16/10/2006
Reeditado em 11/10/2017
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