OS LIVROS E EU
Fui uma menininha muito solitária;não mudou nada,sou uma mulher muito solitária.Sabe aquela do Camões”...e ,solitário andar por entre gente”?Pois é!
Filha de uma Delegada escolar do interior,(algo como uma fiscal graduada do funcionamento das escolas públicas)e de um comerciante e fazendeiro,filha única,vali-me dos muitos livros que meus pais me davam para driblar a solidão.Foi um bem e foi um mal.Bem ,porque tinha um conhecimento muito acima dos meus companheiros da mesma idade ;mal porque não nos entendíamos;eu achava um pouco tediosos todos aqueles adoráveis brinquedos infantis. Assim,crescendo entre adultos e interagindo com adultos vi passar a infância mergulhada num mar de livros.
Na escola,minha aparência magra e com grandes óculos,não ajudava nem um pouco num país que cultua a beleza;além disso,era péssima em esportes ou ginástica
.Como dizia Jorge Amado ,nascemos com defeito de fabricação:não sabíamos assoviar,andar de bicicleta,nem nadar.A única coisa desenvolvida que eu tinha era o cérebro.
Ouvia,sem graça,mas,com estoicismo,os apupos dos colegas:enciclopédia ambulante,sabe -tudo,metida,desengraçada.Ouvia,magoada,mas,não enraivada.A filosofia me ajudava.
No meu sétimo aniversário meus pais me deram as obras completas,infantis,de Monteiro Lobato
.Lambuzei-me de Narizinho,mergulhei no Reino das Águas Claras,comi os quitutes de Tia Nastácia e bebi a sabedoria de Dona Benta;sabedoria popular,feita de vivencias.
Mas.me parecia mesmo era com a Emília;descrente,desbocada,verdadeira,sem papas na língua,deixei minha mãe embaraçada muitas vezes;continuo deixando pessoas embaraçadas até hoje.
Até hoje continuo detestando a mentira e a hipocrisia.Com Lobato,meu pai espiritual,aprendi além da história do mundo que sempre me interessou, um pouco de tudo,geografia,matemática,noções de química e física, e estava preparada para vôos mais altos.Apaixonei-me pela cultura helênica e pelos deuses gregos.
Acho que foi ai que comecei a peitar Jeová,um deus cobrador e sem senso de humor.
Comecei a ler,emprestado,”o Tesouro da Juventude”.Bem,ali tinha também um pouco de tudo e eu devorava aqueles saberes com um apaixonado sabor de vitória;quanto mais aprendia,mais queria
.Comprei a coleção completa ano passado,num sebo.
No meu aniversário sempre ganhei livros,dos tios,dos amigos.
Assim,veio Vítor Hugo,”O corcunda de Notre Dame,””O Noventa e Três”,”O Homem que ri”.
Veio também os Dumas,pai e filho,”Os Três Mosquiteiros”,ai!,a coragem de D’artagnan,que começou como um campônio canhestro e se transformou num herói de capa e espada, cuja lealdade ao rei,enchia-me de alegria,eu que sempre prezei a lealdade
.Só ele e seus companheiros Athos,Portos e Aramis,para desfazerem as intrigas de Milady e do nefasto cardeal, e defender a rainha
.Aquela estória do roubo do diamante e o desfecho dela me excitava e fazia perder o sono.
Depois veio Jack London,”Caninos Brancos”,as aventuras de Huckleberry Finn,os contos de Grimm,Pierrot e as fábulas de Esopo e La Fontaine.
As estórias nórdicas de Selma Lagerlöf,prêmio Nobel, porém,nunca mais lida ou comentada.
Dom Quixote entrou na minha vida como um chute no traseiro;me pôs em alerta,me fez pensar.
Para mim,que passo a minha vida a lutar contra moinhos de vento,ele foi meu tipo inesquecível;preparada desde cedo para apreciar e respeitar a sabedoria popular ,Sancho Pança era um prato cheio.
Depois veio “Tartarin de Tarascon”,”As aventuras de Gil Blás de Santillana”,que acabei de reler há pouco.
Conheci os portugueses,Júlio Diniz (A Morgadinha dos Canavias),Eça,(A cidade e as serras),Bernardin Ribeiro(Menina e moça),Fernando Pessoa,cujos versos são companheiros de sonhos...
Ia crescendo,entrando na adolescência e o meu vício pela leitura,crescendo mais ainda.
Jorge Amado e Érico Veríssimo conheci já na adolescência;Clarissa,do segundo e Cacau,Suor,do primeiro,abriram meus olhos para as questões sociais.
Vieram ,depois,todos os outros:Mar Morto,Capitães de Areia,A Morte e a Morte de Quincas – Berro D´A’gua,Os pastores da Noite;com eles descobri que morava numa cidade mágica,de ladeiras estreitas cheirando a dendê e personagens verídicos,reais,de sonhos,como Vadinho que voltava do Além para uma noite de amor com sua amada.
Como Orfeu e Eurídice!
“O Tempo e o Vento “trouxe-me o cheiro dos campos e o açular das ventanias dos pampas gaúchos;um dia,muitos anos atrás,estando lá, ainda ouvia a voz de D. Bibiana:”noite de ventos,noite de tempestades”.E o Capitão Rodrigo Cambará passou a ser o meu modelo de homem.
Machado de Assis foi uma grande descoberta .Memorial do Ayres,Memórias Póstumas de Brás Cubas,D.Casmurro – Capitu e Bentinho,como esquecê-los?-
Ai,veio Diadorim e veio Riobaldo e atrevi-me nos campos das Gerais;trazida pelas mãos do Guimarães Rosa,aprendi nova linguagem e um novo modo de entender pessoas,como ,mais tarde José Saramago,com seus textos sem pontuação e a linguagem histórica dos infelizes. Graciliano,com seu estilo de cipó caboclo chegou depois.
Antes de chegar lá,veio Oscar Wilde.O retrato de Dorian Gray,que livro!
Esqueci-me de Balzac – que coisa imperdoável! – cuja aquisição da Comédia Humana custou-me um ano e meio de meu salário de professora.
As Ilusões perdidas,Eugênia Grandet,O Pai Goriot,;através deles conheci e abominei a ingratidão,o desamor filial,o interesse.Bianchon e o banqueiro Cesar Birotteau,Luciano de Rumbempré,- quantas vidas,quantas facetas do personagem humano,quantos estudos em vermelho;e,ai,me lembra Conan Doyle e o romance policial.
Passei por Sherlock Holmes,continuei com Dashiell Hammett,aprendi dedução de uma forma elementar,meu caro Watson,desmascarando bandidos com o detetive Sam Spider,atrás de um Falcão Maltês.
Todos me perguntavam:-Aonde está o gato?- e eu aprendia com eles a reconhecer os criminosos escondidos em suas capas de hipocrisia.Fundamental foi Aghata Christie;fui Miss Marple e fui o homenzinho que passava desapercebido,Hercule Poirot.
Veio Thomas Mann:Morte em Veneza,José e seus irmãos.
Vieram os contos de Tchecov –Tio Vânia – e na rabeira ,os russos;ah! os russos!Tolstoi,Dostoievsk i- Os irmãos Karamazov-.
E veio Maupassant! Que magistral estudo da natureza humana!
E os ingleses!
Shakespeare, Dickens, Somerset Maughan, Jane Austen.Puxaram os americanos: John dos Passos, Truman Capote,Jack Kerouac,Hemingway,minha paixão secreta,Poe e o seu corvo a dizer “nunca mais”,Faulkner e o desbravar da alma americana sepultada debaixo de um monte de hipocrisia social.Scott Fitzgerald.Nunca mais seríamos os mesmos depois desta mistura,desta loucura.
E os poetas!Castro Alves,Victor Hugo,Torquato Tasso,tantos!Os sonetos de Camões,Os Lusíadas,João Cabral de Melo Neto,Drummond...
Daí,como uma conseqüência de tudo isso,já na faculdade,vieram os filósofos;estava preparada para Sócrates e Platão,Locke,Schopenhauer,e o maior de todos,o que realmente fundou os alicerces da minha vida adulta:Nietzsche;Assim Falou Zaratrusta e eu ouvi
.Vade mecum?Vade Tecum!Obedeci.
Voltaire,Diderot,como esquecê-los?
Todos ajudaram a forjar minha personalidade,a pensar com minha própria cabeça ,a não me importar com o que as pessoas pensam ou dizem,a esnobar o establishment.
Aceitem-me ou deixem-me!Meu grito de guerra.
Perdoai-me,tinha trinta anos. e acabara de descobrir Simone de Beauvoir e Jean Paul Sartre.
E assim,continuo as minhas descobertas.Casada com a Literatura em comunhão de bens e males aqui cheguei.Vim pela mão de muitos. Benditas companhias!