A noite de um Biomecanoide
O frasco de Eau Sauvage pela metade, um gosto amargo na boca, algumas marcas na pele...Um reflexo esquisito no espelho. É isso que sobra quando os sonhos se tornam uma parte pisoteada da sarjeta. Quando a criança morre pelas mãos de um pai . E sobra o homem, o bicho, com o corpo tatuado de símbolos obscuros, estranhos. Sem história.
O nome se perdeu há tempos e o que há é apenas Mirko. Sem sobrenome, sem futuro. Um corpo resumido em musculatura esculpida, alguma infecção intermitente e um maço de Hollywood no bolso.
E sobra a rua, onde passam as criaturas mais perdidas, dispostas a pagar uma quantia ou qualquer coisa para sentir a vida. Sentir de fato o que há de mais próximo da verdade. E não morrer hoje nem tarde demais. É o que há de poético em manifestações fisiológicas.
Mirko está preso dentro de seu jeans colado e de sua bota de cowboy. Para quem paga, este é o Paul Newman acessível, mas de uma vazio tão assustador... onde cabem juras de amor de 15 minutos e paixões avassaladoras tão demoníacas, que fariam minhas faces corarem, caso eu tivesse algum tipo de compaixão.
A velhice ronda, como um cão com a boca espumante, farejando a carniça e os fluidos misturados num beco tão repugnante e sinistro que faria a alegria de jovens iniciantes, trancados em seus uniformes limpos e bem aderidos ao corpo.
Mirko espalha seu odor pela calçada a espera de alguma perversão em forma flácida e decadente, provavelmente casada e pai de três álbuns de família.Seu nojo porém era menor que a fome e menor que seus sonhos que se resvalavam para um palco iluminado, para os aplausos de figuras com rostos flamejantes e dentes crispados, possivelmente lavados pelas lágrimas incandescentes, decorrentes de uma interpretação jamais vista de Hamlet. Sobrou a pornochanchada.
Duas da manhã.
As horas são implacáveis, como a fúria da morte que não vem embalada por réquiens titânicos ou pavannes transbordantes de sensibilidade. É a finitude desconcertante e o lamento falso de uma platéia sedenta por mais e mais dor.
O carro para, preto como a alma dos vultos que tentam sobreviver à custa do desespero por afeto ou por uma latrina biomecânica. Nesse momento quase posso ouvir alguma música tentando dizer ao destino que tudo pode ser diferente, como uma mãe deixada no passado e acenando a mão, quando o sonho impele o filho para um mundo tão perigoso quanto indecifrável.
Mirko se atém ao preço de seus serviços e ao nojo, agora controlado, por anos de serviços prestados. E o homem dentro do carro, com seu rosto desfigurado pelas sombras da noite e pelo nervosismo de sua eminente condenação ao inferno, abre a porta para que entre a condenação. E é assim que as coisas funcionam, num mundo onde resta apenas o sonho morto, o corpo automático, e duas infelicidades nada poéticas.
O motor, as luzes que correm, os prédio que passam, a marcha dos condenados ao inferno, é tudo tão presente e ao mesmo tempo tão distante, que sobram dentro do carro apenas duas carcaças que não sabem para onde correr. Mirko não observa quem irá lhe pagar. E aquele que paga só pode observar partes de um corpo como uma vaca exposta num açougue. E se a felicidade por 15 minutos tem preço, é R$ 80,00.
Eu, de onde estou agora, contemplo uma lua errante por um céu incerto, crendo ser essa a coisa correta a se fazer, já que nada aqui embaixo, nessa terra devastada, me surpreende mais.
Assim como não me surpreende o carro preto com dois homens que para ao lado do meu. Posso sentir o perfume de Dior ainda aviltado pelas futuras secreções, misturadas a micro-partículas de pele, e pelos lancinantes gritos não dados, que acordariam aos cães do inferno.
E ela surge novamente. A lua. Tão assombrosa, tão impertinente, quase que condenando a todos nós à morte. E o ritmo da marcha do tempo muda. Se torna vagaroso. Assim como os corpos que se atritam de maneira animalesca. Repugnante e digno de curiosidade. As tatuagens misturadas a dobras de pele e tecido, dentes que poderiam rasgar minha musculatura.
É assim que um quadro se desenvolve num terreno baldio, onde vamos todos nós um dia para morrer um pouco. É sombrio, é longe do mundo, é longe de pássaros que cantam, longe de sorrisos discretos que nos obrigamos a dar, longe de olhares que condenam, longe de nosso dom de destruir tudo.
E o que pode definir o limite para a vida, é apenas uma interrogação. E esta, acompanhada de uma revelação, determina a fragilidade de nossa condição.
Mirko se descobre o filho daquele que o paga. Pois é assim que os deuses se vingam de seu esquecimento. Condenando a todos ao inferno ou à vida.
O que se pode esperar de uma virtude mentirosa? O que esperar de um lugar que, de tão horrendo, jamais deveria ser visitado? Eu não tenho respostas, nem tenho voz para clamar aos céus uma segunda chance. O que de terrível se pode esperar, já está consumado.
E é assim perplexo, que assisto a uma faca entrar por três vezes no corpo de Mirko. O cheiro não pertence mais à Dior, e sim ao adocicado do sangue fresco. E é assim que todos os tangos deveriam terminar.
O corpo com desenhos estranhos e agora sem vida, que dançou um tango sem volta, pode ser sereno agora. Em algum lugar deve haver esperança. Aquela que nos faz lamentar .
E vejo o corpo ser atirado no matagal, como que uma animal abatido. E eu tento falar alguma coisa. Mas a resolução da cena é mais bem resolvida que minha poesia amadora. Me calo. E espero o amanhã chegar.
O carro preto se vai, com uma culpa tão ultrajante, que nem perdão pode emudecer.
E a noite pretende seguir em frente. Ignorando o mal que se dá a cada esquina. Somos todos estrangeiros.
Perfumes, manias estranhas, sonhos de um personagem que mal consigo descrever, é tudo como o som desgraçado de um tenor à beira de um ataque de nervos, tentando alcançar notas desumanas.
Não somos felizes, porque condenamos um corpo tatuado ao limbo e ao esquecimento.
Eu nunca mais dormirei, nem amarei alguém.