Projeto Casa Lar-A experiência vivenciada
 
Trabalhei alguns anos num abrigo de menores oriundos de famílias desestruturas ou órfãos. Essa instituição trabalhava com o Projeto Casa-Lar, que consistia em abrigar irmãos, a fim de que laços familiares não fossem desfeitos.
 
Tínhamos um nº.razoável de crianças e adolescentes e aqueles que tinham família havia um trabalho no sentido de reitengração a mesma.
 
No início de meu trabalho precisei de uma supervisão terapêutica, pois não conseguia ficar imune ao sofrimento quando lia seus históricos de vida.
Crianças estupradas por pais, padrastos desde a tenra idade. Outras, queimadas com pontas de cigarro pelo corpo. Nessa época minha filha era pequena e não conseguia entender como pais eram capazes de tamanha crueldade. Fazia um plantão uma vez na semana, e ao chegar a casa minha vontade era de deitar e esquecer tudo que havia lido, ouvido e acompanhado.
 
Aos poucos fui me afeiçoando àquelas crianças e adolescentes de forma tão intensa que aos domingos, junto com a minha família, preparávamos lanches diferentes para eles.
 
Conseguia junto a produtores teatrais leva-los ao teatro, experiência ímpar para cada um deles.
 
Com essas crianças e adolescentes tive um aprendizado de vida muito grande, cresci como profissional e principalmente como pessoa.
 
Mas, nem tudo é perfeito, o Estado concedia um subsídio para cada abrigado, porém quando eles completavam 18 anos não podiam mais continuar no abrigo.
Imaginem nossos filhos com estrutura familiar não têm aos 18 anos condições de sobrevivência sozinhos. Eles então se viravam da maneira que podiam.
 
Com o tempo não pude mais ser a psicóloga, havia uma mistura de afeto exacerbada no meu trabalho. Pedi demissão e passei a ser a tia, um pouco conselheira, um pouco colaboradora, mas acima de tudo amiga.
 
Há alguns anos a instituição terminou com o projeto, pois as exigências burocráticas são muito grandes, nossas autoridades preferem o menor na rua a abrigado em um local que segundo eles não está dentro dos padrões idealizados.
 
Com alguns mantenho contato permanente.
A adolescente A, hoje casada com um oficial da Marinha, vive no Rio Grande do Sul e cursa faculdade de Serviço Social. Exemplo de superação, força de vontade e persistência.
O adolescente F trabalha há uns 5 anos no escritório de meu cunhado.
O adolescente P também trabalha como entregador de uma farmácia.
 
Os dois últimos por não terem nenhuma referência familiar continuaram morando com a diretora da instituição que mesmo sem quaisquer subsídios os abriga até hoje.
 
Com o adolescente V perdi contato há alguns anos, esteve servindo ao Exército e numa bobeira roubou um tênis, tendo sido preso. Posteriormente, voltou a cometer outro delito, roubou um celular e encontra-se preso até hoje.
 
Relato grande, talvez vocês estejam cansados de ler até aqui. Mas agora chegou a parte mais importante dessa crônica.
 
No sábado estive comemorando os 30 anos da minha afilhada Hellen e quem ganhou o maior presente fui eu.
 
Encontrei Maria Elizabeth Salles de Simone, pessoa por quem nutro um carinho mais que especial, e ela ao aproximar-se de mim verbalizou: “tenho uma cartinha para você”.
 
Recebi, depois de tanto tempo, um cartão do menino V que ainda encontra-se preso. Chorei muito de emoção, por saber que depois de tantos anos eu ainda faço parte de sua memória afetiva.
 
Sou na minha essência uma pessoa simples e humilde, mas nesses momentos cresço, fico orgulhosa por saber que deixei alguma sementinha plantada na vida de alguém.
 
Amanhã escreverei para ele e já estou providenciando junto a um amigo advogado para que tome conhecimento do seu processo, pois tantos traficantes perigosos recebem indultos e coisas parecidas e esse menino pelo roubo de um celular encontra-se tantos anos preso.
 
Registro aqui meu carinho a toda essa turminha que passou pela minha vida, que me fez acreditar que é possível sim a recuperação, é possível sim ajudar ao crescimento quando todo nosso trabalho é feito com amor, carinho e afeto.
 
*Texto sem revisão, escrito com forte emoção e com o sono marcando presença.