Instintos

Da primeira vez então, que soprado ao nariz do barro, brotou-se da castanha o primeiro sentido. Mínimo, frágil, quase que vitrificado em uma pequena esfera absoluta. Era o sentido que primeiro se esvaia com os cumprimentos do túmulo da noite, navegando em pancadas lentas. Porém também era o reflexo fugaz que se assustava já no raiar da manhã com as primeiras facadas do sol silvestre. Sentido de “não me toques” que muitos já perdem com a mancha da vergonha, um espírito intocado que nem ao menos no espelho se explica, este tato, senhor paterno da preguiça e que em sua maior utilidade nos afasta dos fogos das más intenções.

Logo em seguida veio à vez o som. Todos os acordes que populam casas instrumentais e gargantas passaram a ter vida, já que alguém as absorvia. Talvez o sentido da loucura aqui estivesse consagrado a crescer, numa sanidade medonha, de escutar estampidos, de buscar ao escuro qualquer tamborim que lhe traga a luz e a coragem. Instinto dos perigos é a audição. Quem com ínfimo cuidado não ouve mata por pouco, quem ao pé da letra leva mata por menos ainda.

E por ser luz a se tratar e ata-la, duas voltas no espaço além do poço e a escuridão se desfaz. O menor dos calibres, a pequena amêndoa de chama trina contida na verdade pela fenda que se pôde ver. Chama com as vistas à terra e os palmos da mão, estigma ilusório é a vista, já que quem dá as cara jamais poderá enxergar adentro de um coração. Inimiga cruel: Dá-nos regalias, as erupções, as direções e o caminho certo, mas basta um segundo de escuro dos cegos e confundem-se a taça do vinho e o copo do fel.

Fel: adorado mel do desgosto e do azar dos que tem fome. Sentido que toca a espuma em uma maré de intuitos, dos sabores é a mente quem forja. Paladar é para quem pode quebrar as barreiras da casca, a gula é o vicio do esforço de compartilhar-se consigo mesmo. Afastam e ousam esquecer do tempero, mas de um prato que almejam e de um feudo de sangue ninguém pensa duas vezes de quais são os sabores, pecados ou pecados o gosto devora o mundo: “Decifra-me ou devoro-te”.

Por fins veio circunscrito, “cão que acompanha o dono tem faro duplo ao abate e mais carne no prato”. O cheiro que nos guiou à onda dos ventos, as ruas que no outono esmaecem e que renascem na fênix das narinas sem dar de palavra alguma, apenas em odor infiltra o espírito, instiga o desespero e a antropofagia moderna, de ferro. Olfato que muito nos dá persuasão leva-nos ao bosque dos enganos e das fragrâncias serenas, abarrotadas de espinheiras e cravos. Dá-nos além, a ojeriza dos venenos ou das verdades da carne crua, mesmo que não nos fale se os mortos que estão ainda entre nós são os que caminham ou os que apodrecem sete palmos abaixo de um belo epitáfio.

O sexto sentido nem ao menos fez questão de aparecer. Imagina agora o que talvez seja, ou deixa de ser. É algo de que pouco se fala, mas muito se traduz. Os seis sentidos agora habitavam a face oculta da Terra. Estava criado então, o homem e toda a sua perdição.