Ajude um viciado

O caminho do vício é um caminho sem volta, um caminho de pedras pontiagudas, cuja travessia não desejo nem para meu pior inimigo. A personagem responsável pelo vício em questão é uma droga realmente diferente: Freecell.

Pior do que o próprio vício é o fato de estar viciado numa droga onde nem sempre as doses proporcionam prazer. Muitas vezes o orgasmo não vem. O ápice do prazer raro durante o consumo é quando as cartas pulam aleatoriamente na sua frente, numa animação assustadoramente sofisticada para um visual tão simples. E você tem a obrigação de se tornar um usuário experiente para viver esta sensação. Os caretas iniciantes no uso penam bastante até conseguir chegar ao clímax.

Nas primeiras semanas de uso, geralmente a larica precede a nóia. Para descrever esta situação com mais clareza, inverto a frase de José Simão: "nóis goza, mais nóis sofre!". Atingir o ponto alto da euforia através do uso desta droga é tão difícil quanto achar o ponto G de uma virgem, procurando pela narina.

No decorrer das noites, muitas delas regadas a insônia, os intervalos entre uma dose e outra são cada vez menores. E durante cada intervalo, o pensamento é apenas sobre a próxima puxada. As vozes malditas na minha cabeça, quando não estão cantando Judas Priest, imploram-me para ligar a máquina e jogar "só mais uma partidinha".

Quando, exausto na cama, finalmente consigo dormir, logo acordo com uma nova combinação de movimentos arquitetada para finalizar o jogo de número 15680. Mas vejo as investidas caírem por terra, em vão. O implacável um cinco meia oito zero segue vitorioso, sorrindo e ostentando o encanto inegável de seus dígitos vistosos.

Graças a estas noites maldormidas causadas pelas perturbações do vício, reparei, no espelho do quarto, que minhas olheiras já são tão profundas quanto as ondulações do cabelo chanel do Valete de Copas. Para tentar minimizar este aspecto, tenho usado margarina na pele da região localizada abaixo dos olhos. Conhecidos meus de pouco coração, que não sabem da minha situação difícil, me apelidaram de Tio Chico.

Meus amigos me advertiram. Me alertaram para que eu não me deixasse levar pela beleza das quatro moças e pelas cores intensas dos números, apesar da mísera paleta de 256 cores. E num ato desesperado, em meio às alucinações causadas pelo insólito tabuleiro virtual verde, eu caceteio o teclado fazendo um protesto gritado. "Maldito 486 com leitor de CD quebrado!", exclamo, com a voz já distorcida pelo uso contínuo da droga.

Complementando a frase do Zé do Bigode, 'a felicidade é uma arma quente usada para atirar em alvos frios'. Experimente tatear o monitor durante um duelo com valetes e você constatará a veracidade desta afirmação.

Se você tem conhecimentos sólidos em Psicanálise, lê Içami Tiba ou possui em sua coleção discos do Padre Marcelo Rossi, você conhece o caminho da salvação. Eu, sublinhando a importância da força da amizade verdadeira, te faço um apelo: ajude-me. Eu quero descobrir o mundo maravilhoso de Deus, antes que eu seja destruído pelo mundo satânico dos quatro deuses representados por naipes! Os quatro cavaleiros do apocalipse. Aliás, estou desconfiado que Freecell significa "apocalipse" no idioma aramaico...

Eu juro que estou me esforçando para fazer minha parte e dar a volta por cima, buscando conter o estrago. Se um dia eu trombar na rua com o cara que inventou esta droga maldita, juro que encho a cara dele de tapa.

Hoje ainda estou vivo, apesar de estar preso neste submundo do vício. Amanhã posso estar morto, ou até mesmo escrevendo livros de táticas e macetes para os 32000 jogos do Freecell, e aí já vai ser tarde. Se você gosta de mim, por favor, pense nisso.

(Gabriel)

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Escrito durante uma dose prolongada da droga ao som perturbado e perturbador do Pearl Jam, imagem dos Simpsons e paladar de café.