CRÔNICA DE UM FRACASSO PRENUNCIADO
Eu hoje estive vendo uma galeria de pessoas derrotadas mas com gritos de certeza numa espécie de vingança futura. Eu estava entre eles em pensamento e se eu estivesse lá de fato, certamente estaria gritando como eles as mesmas palavras-de-ordem, superando a derrota do dia e sufocando a seqüência das derrotas diárias. Há 30 anos fazemos isto, ou seja, oscilamos entre o suicídio e o grito. Eu teria gritado mas depois em casa eu pensaria no assunto, já com a ressaca moral das derrotas acumuladas.
Está cada vez mais difícil “arrancar alegria ao futuro”. Não sei, mas penso que se houvesse uma mudança ela seria, talvez, mais uma manchete nos jornais e a nossa vida prosseguiria, infelizmente, da mesma forma. Estamos ao largo das coisas do mundo e as alterações de percurso já não nos atingem pois estamos já fora do curso das coisas.
Hoje, depois de 10 anos, eu reconheço uma pessoa que conheci no afã estudantil. Bem no início da luta pela vida. Estávamos na mesma sala de espera, lutando por uma perspectiva melhor de vida. Enquanto esperávamos, cheguei a compor alguns versos banais enaltecendo a sua beleza e a sua calma, típica de quem vai, certamente, abarcar alguma coisa. Ela apertava os livros contra os seios e caminhava pelos corredores de espera. Seus cabelos esvoaçavam e eram longos e lisos. Dez anos depois eu a reconheço praticamente na mesma situação em que estávamos e em que estou ainda, quer dizer, nos corredores de espera. Apenas que agora somos pessoas adultas e já resignadas com a merda.
Será que nada mudou desde então? Alguma coisa sempre muda na periferia da vida. Ela hoje está de cabelos curtos e o corpo mais velho ainda lembra as antigas formas desafiantes ao mundo. Parece que o aspecto prático inundou tudo. Trabalha e vende roupas nos intervalos do expediente de trabalho. As calças jeans deram lugar aos moletons de malha que sempre me pareceram pijamas.
Ela não me reconheceu de imediato e mesmo eu tive uma certa dificuldade em reconhecê-la, pois a vida, às vezes, obscurece a vista. Seguimos por caminhos diversos que nos levariam, por uma série de coincidências e acasos fortuitos, ao mesmo ponto onde agora estamos, ou seja, na cela pública e comum onde nos debatemos. O que prova que a vida é cíclica. Cíclica sem sair do lugar de onde começou a rodar.
Não me apresentei. Não me identifiquei. Hoje eu me escondo atrás de uma grande barba e estou quase sempre indisponível para a vida. Muitos dos meus amigos já morreram, outros se afastaram e o fato comum de termos as nossas vidas destroçadas na verdade não têm muita importância. Apenas que temos os nossos filhos para criar e reconhecer esta pessoa hoje, 10 anos depois, despertou em mim uma súbita nostalgia de quem se aproxima do fim tendo como bagagem apenas a melancolia das malas vazias.
Revejo meus livros e meus (des)apontamentos e percebo que tenho, além das gavetas, uma cabeça abarrotada de tudo e com tendência ao vazio. O tempo é inexorável e dilui a beleza da existência, como de fato se diluiu em nós em nossa miséria funcional. Atualmente eu me sinto como um velho poeta de trinta e poucos anos enquanto que ela ainda é de certo modo bela, mas de uma beleza destituída de especificidade e de sonhos.
PS: Estou agora no meio das galerias de onde jogamos papéis picados sobre os nossos adversários. Queremos um pouco e precisamos ainda “arrancar alguma alegria ao futuro”, por isso rompemos às vezes o nosso silêncio e permitimo-nos um pouco de humanidade e ternura para conosco e para com os de nossa geração.
(publicado no Jornal Garatuja, Bento Gonçalves/RS em Agosto/1994).