Quando os olhares se cruzam

Sabe aqueles dias que da tudo errado?

Saí do trabalho muito tarde e desci pelas escadas do prédio, passando direto pelo porteiro e entrando debaixo de uma chuva.

Dessa vez eu não dei “tchau”, não preciso usar de falsidade para fingir cortesia a alguém, como todos fazem.

Chuva, fraca e fria, na madrugada e em tropeços molhando a minha calça, eu vou seguindo até a lanchonete da esquina, que sempre vou para tomar café.

As calçadas de paralelepípedos irregulares da cidade são horríveis para andar com meus sapatos sociais pretos, que ficam só querendo me derrubar.

Vejo um mendigo desacordado no meio do caminho, na calçada, encostado na parede de uma loja fechada, ele segura uma garrafa de bebida vazia. Um jeito de se embriagar do mundo, ficar tonto e sumir. Mergulhando na inconsciência e esquecendo-se de tudo por alguns instantes. Não posso me dizer igual a ele, mas estamos os dois tendo um mal dia de jeito diferentes, ele apenas não sabe disso.

Continuo caminhando naquela chuva, carregando minha mala com mais de uma tonelada. Um carro passa muito rápido numa poça de lama, fazendo uma onda nascer, vejo apenas a água vindo e batendo em mim com força. Apenas o que preciso, água fria. É um remédio. Ajuda a pensar quando eu chegar a casa depois do café, deparar-me com uma casa vazia, uma cama enorme que me lembra de ter espaço demais sobrando. Então irei para casa de novo e dormir outra noite sozinho com as minhas próprias preocupações.

Bato o maldito sapato numa pedra alta e meu corpo vacila quando e minha mão balbucia deixando a pasta cair no chão, a droga da trava se abre com o impacto na calçada, espalhando todos os meus documentos no chão. Espalhando-me e molhando-me na calçada, porque é aquilo que eu sou no mundo, eu sou o meu trabalho.

Iria demorar muito tempo mesmo para eu recolher tudo de novo. Mas quando você pensa em que a rua está vazia, podem-se escutar alguns passos, se prestar atenção, ou um sussurro doce lhe dizendo: “deixa, eu ajudo a recolher contigo.”

Então se olha um ser perfeito, já a se agachar para lhe ajudar a se recolher de novo e organizar você.

É aquele momento em que você sente seu coração acelerado e sem reação.

Sabe quando você olha de repente, enxerga o fundo brilhante daqueles olhos e lhe olham de volta sorrindo, enquanto você percebe que naquele momento nem um segundo se passa, que o tempo simplesmente... Parou.

Então eu aceito a ajuda e recolho todos os papeis colocando-os de volta na minha pasta olhando de relance para cada traço que tenho a sorte de ver, então ergo a cabeça e novamente os olhares se cruzam. Nós nos levantamos, ela sorri.

Enquanto tudo que me sai dos lábios é um singelo: “obrigado”. Então ela acena, passa por mim e vai embora.

Sabe os dias em que da tudo errado? Então acontece algo que lhe faça esquecer de todo o resto e perceber que não deu nada errado, tudo andou como tinha de andar e deu certo. Trabalhar até àquela hora, me distrair com o mendigo bêbado, escorregar e deixar a mala cair. Na verdade eu tive sorte. Por que aqueles segundos depois aconteceram comigo. Nós existíamos apenas para eu mesmo, mas aquilo já era importante para mim, não se pode mensurar um bom momento, não são grandes nem pequenos, porque ficaram pra sempre junto de você. Sua imagem agora vivia eternamente em mim e esta noite eu não dormirei mais sozinho.

Chego à frente da lanchonete, agora eu vou tomar meu café.