A CELEBRAÇÃO DO ÓBVIO (crônica indigesta)
Com grande pompa e aparente erudição podemos festejar as mais deslavadas asneiras e lugares comuns, basta que isso seja escrito com uma certa distinção e rebordado de alguns vocábulos mais vistosos. Exemplo disso tem sido tantos discursos, louvações, crônicas, artigos e até poemas, nada escapa a maléfica capacidade que têm as criaturas de se repetir e repetir. E nada é mais atraente para o gosto popular do que ver o senso comum nivelado por baixo, triunfante em máximas de moral duvidosa, em versos de rimas pobres e piegas, em exaltações vazias e abstratas ou valores caducos.
Dessa forma o amor nunca se cansa de "ser lindo", "aqui se planta, aqui se colhe", "coração" rima incansavelmente com "emoção", "o mundo é pequeno", " as rosas têm espinhos", não se troque "o certo pelo duvidoso", "é com grande orgulho e redobrado júbilo", penduricalhos, foguetórios, flores de plástico, máximas, unanimidades...
O óbvio é um sujeitinho pegajoso que se alimenta de mentes preguiçosas, alienadas, estreitas. Este senhor adora falar aquilo que todo mundo já sabe, é dono de uma voz meio nasalada e fala sempre no memos tom e velocidade, o que deixa muita gente impaciente. Ele frequenta com assidudade todo tipo de local, desde o mais pobre ao mais requintado, pois tem lugar garantido por se tratar de um senhor que socorre a quem quer que seja numa hora de aperto em que é preciso dizer qualquer coisa, desde que se diga algo aos circunstantes que na verdade é provável que nem liguem para o que for dito, uma vez que já se sabe que em certas situações o discurso é mera formalidade. Ah, as formalidades, elas são por si mesmas uma ladainha que parece fazer a felicidade daqueles que não primam muito pela imaginação, nem pelo árduo labor que nos faz querer ver um pouco abaixo da superfície das mesmices mundanas. Já vejo senhoras em roupas de cerimônia correndo pressurosas a dar conta de que tudo aconteça de forma impecável. As formalidades são aparentadas com os rituais, mas os dois já partem em direções opostas desde o início. Enquanto estes visam à introspecção, à busca de sentidos mais profundos, descobertas íntimas, recolhimento, aquelas não passam de coreografias para celebrar superficialmente os costumes instituídos que tentam demarcar territórios de abrangência de poder. Sendo assim por natureza, formas de vivências sociais de aparência, serão totalmente receptivas ao Senhor Óbvio e suas sempre bem-vindas máximas e ditos e considerandos e principalmentes que serão consumidos juntamente com brigadeiros e cajuzinhos.
Umas três horas diárias de silêncio total, seriam de grande valia para que, quem sabe neste intervalo, algo diferente ocorresse e algum inesperado estalo pudesse elevar o nosso olhar para um pouco acima da mesmice e da tediosa repetição das nossas rotinas sem questionamentos e pior, apontando o dedo para quem ousa fugir ao estabelecido.
Parece que humanos têm mesmo seu lado instintivo muito mais presente do que gostariam de admitir. Isso se revela pela frequência com que vemos as gentes teimando em seguir por uma velha trilha sem graça, quando virar a esquina e pegar outra via pode lhes oferecer novidades bastante atraentes, sem nenhum esforço suplementar. Nós nos repetimos à exaustão e nem damos por isso. Uma invisível canga parece nos prender ao chão do lugar comum e comer o capim ralo do mesmo metro quadrado por anos a fio. Celebrar cerimônias desgastadas e vazias, rir das próprias caretas ao espelho, belos espécimes de personalidades carimbo, prontos a engolir surradas máximas bolorentas, raciocinar segundo o senso comum , eis algo que realmente faz com que algumas pessoas que não aceitam pôr as vendas do conformismo e ignorância, tenham que se calar ou perder definitivamente a compostura, ao perceber que tantas pessoas lhes tentam convencer de uma mesma idéia preconcebida.
Celebrar o óbvio é fazer reverências ao primeiro plano, ignorar solenemente as imagens e pistas que se desenham logo ao fundo dos clichês e bordões, consumir e e cultuar símbolos que, como a superfície aparentemente intacta de um lago, podem esconder entulhos e uma infinidade de resíduos indesejados dos quais, sem dúvida, não será tomado conhecimento.
Jamais é verdade, iremos transpor totalmente os limites destes cercados que, de certa forma, nos transoformam na multidão, em inocentes de um delito anônimo de embotamento e superficialidade.
Mas aqueles cuja vista se ergue pouco acima dos muros do conformismo, comodismo e alienação, arcam com a incumbência de rasgar a bandeira das hipocrisias das boas convivências, apontando além das aparências, rejeitando a mesmice e se expondo ao ridículo, qual seja fugir ao consenso, ao lugar comum, ao triste papel de tipo que imprime sempre a mesma letra.