Heroísmo de quintal
Estava na rede descansando e lendo a biografia do tirano alemão que matou dezesseis milhões de pessoas com sua loucura de maioral. A rede fica no pátio onde ao lado fica o velho sobrado branco, estilo mexicano, dolorosamente níveo aos olhos dos passantes. O dono deseja vender o sobrado onde ultimamente tem sido habitado apenas por pardais recreativos e daninhos. No canto da parede há uma casinha especial própria para passarinhos de jardim que muitas vezes permanecem penduradas com tufos de ninhos abandonados.
O sol forte do meio-dia queimava a grama verde, enquanto eu estava na parte do livro do tirano em que ele toma a Polônia de assalto, matando, destruindo, dizimando. Escuto ao meu lado um piado triste, nascido de pardal-filhote desgarrado. Os ninhos precários, mal construídos, resultam em quedas prematuras dos pequeninos. Trato logo de tomar uma providência cabível para o caso. Em sua miséria o coitado não apresenta resistência. Umedeço o dedo na poça limpa de água e dele goteja vida diretamente para seu bico sedento. Bebe feliz com minha prática misericórdia de quintal. Há em torno do muro, entre a bananeira e o pessegueiro, uma algazarra excitante. Verdadeira sinfonia natural que tanto atraiu Pereira Passos, velho prefeito do Rio de Janeiro; que dizem, ter trazido esses pestinhas voadores para o Brasil. Resolvo então lhe dar um lar, um ninho apreciável para que desfrute sem inteira forma das asas; de um começo de vida. Tendo um lar no mundo, pensei, é bem mais fácil buscar felicidade. Voltei ao livro do déspota alemão violento e sanguinário.
Fiquei com pena dos seus pais e tive condescendência de seus irmãos. Pouco se escreveu sobre eles. O tremendo azar ter um consanguíneo aterrorizante como tiveram. A natureza é boa, decido, para encontrar em mim as bases do otimismo prático. Ainda me balançando suavemente na rede percebo que algo estranho está para ocorrer no mundo dos pardais. São três adultos de fraque em plena fúria. Os dois ganham o nome de pai porque levam comida ao filhote. O terceiro é miserável, abominável, que voa até o buraquinho do ninho, para espicaçar o filhote; até jogá-lo novamente ao chão, entre violentas bicadas. Tudo ocorre diante dos meus olhos. Sou obrigado a recolher a avezinha novamente do pátio após um voo forçado. Torno a colocá-lo no conforto do lar, dentro da casa colorida. Seus pais travam nova e insana batalha aérea tentando afastar o inimigo. Sou um dos seus aliados e observo com espírito aberto de Churchill e Roosevelt o quadro desanimador. Decido que sou da FEB e me levanto para salvar da crueldade o meu pequeno amigo.